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És a nossa Fé!

Vítor Damas, por António Simões

«Emblemática figura da história do seu querido Sporting, guarda-redes fenomenal, grande executante, expressão permanente de beleza, elegância, categoria entre os postes.

Sabia jogar, jogar com os pés. Perdeu-se porventura um excelente jogador, ganhou-se mesmo um maravilhoso guardião. Foi talvez o primeiro grande futebolista que me foi dado ver na posição de guarda-redes. Arrisco que poderia ter feito trajeto, no mínimo relevante, noutra ou noutras posições. Tinha qualidade a jogar com os pés, as suas intervenções frequentes, nessa matéria, revelavam alguém com habilidade, domínio pleno das situações.

Não terá sido percursor, na defesa das redes, também a jogar com os pés na área ou fora dela. Só que estava preparado para o fazer, casos as circunstâncias o impusessem. Foi assim desde que, miúdo ainda, garantiu a titularidade, desalojando o Magriço Carvalho, meu companheiro de seleção. Nesses tempos, já havia treino específico, mas ainda não existia a figura do treinador de guarda-redes. O conhecimento dessa área, da maior importância, era insuficiente, tinha muito de empírico. Competia, por norma, a um assistente. Também aos colegas de equipa, só que todos eles tentavam aperfeiçoar o remate, já menos (ou nada) contribuir para o crescimento do protetor das redes. Ou seja, estava invertido o princípio do treino dos guardiões.

Na primeira metade dos anos 70, amplamente questionado, fui sempre perentório, dizendo que o Damas era o melhor guarda-redes nacional. Fui criticado por muitos adeptos benfiquistas, limitei-me a ser honesto com as minhas conceções e avaliações.

Adorava vê-lo. Aquele estilo intuitivo, ágil e fino era um espanto em termos visuais. Os seus reflexos apuradíssimos permitiam-lhe voar com a precisão de uma ave de rapina. Até fintava, possuía toda a pinta de jogador, do jogador das peladas da rua ou dos baldios.

Nasceu com dom para a bola. Pés? Pés e mãos? Mais mãos do que pés, fruto do acaso, de um acaso que virou caso, caso sério. Damas só poderia ser um caso de sucesso. Não ganhou mais títulos, porquanto, no seu tempo, a hegemonia do Benfica era quase intocável. Ainda assim, espalhou classe por esses campos fora. «Vamos ver o Damas» era quase a mesma coisa, para alguns mais ainda, do que «vamos ver o Sporting».

Como última sentinela, tinha um posicionamento revelador de visão refinada e de ciência assimilada do jogo. Lia à distância, lia bem. Lia ao perto, lia bem. Lia o que havia para ler, agia como devia agir. Conferia beleza ao jogo, apetecia pô-lo mais vezes à prova para desfrutar dos seus volumosos recursos e do brilhantismo nas intervenções.

Um guarda-redes tem no resguardo a sua missão. Aventura é sinónimo de perigosidade. No caso do Damas, a tentação poderia ser grande, mas a obrigação maior. Era como castrar a ambição. Que poderia ele fazer? Assumiu que aos outros competia realizar aquilo que talvez lhe conferisse mais alegria. E deu, também aos outros, a alegria de olhar para trás e descobrirem segurança, tranquilidade, paciência.

Se pudesse, o Vítor Damas era sempre o dono da bola. Com as mãos ou com os pés. De técnica primorosa e alma dilatada. Tinha ares de ator de cinema, sempre aprumado. Fora das quatro linhas? Também lá dentro. Corpo, semblante, gesto, postura, tudo se articulava. E a voz? Poderosa, melhor do que muitos locutores de rádio ou apresentadores de televisão.

No pormenor do detalhe, era todo requinte, todo classe. Divertido e ousado como poucos na vida, fazia da profissão uma lei. Cumpridor zeloso, distinguia bem recreio e ofício. Os rigores da competição não lhe passavam ao lado. Os prazeres da vida também não. A arte era conciliar, ele soube fazê-lo.

Nos grandes dérbis, figurava à cabeça do cartaz. Estava para o Sporting quase como Eusébio para o Benfica. Davam-se bem, deram-se pela vida afora. Em sinal de respeito, o Vítor não conseguia tratar o Eusébio no uso do «tu». Foi, muitas vezes, o melhor em campo, até quando copiosamente batido por um Benfica arrasador. Imagine-se o que significa encaixar quatro ou cinco golos e manter a mesma disposição emocional para empreender grandes defesas, daquelas que faziam as delícias do público e dos fotógrafos de serviço nos recintos desportivos.

Viveu depressa, demasiado depressa. Abominava esbanjamentos, o tempo tinha que estar ao seu serviço, tinha que ter o seu controlo. Deu quantidade à vida, deu a qualidade que era muito sua, só sua, embora compartilhada, porque amava associar-se. Alfacinha típico, a sua Lisboa mexia com ele. Ele mexeu connosco. Não jogou no meu Benfica, mas jogou, joga ainda, no meu coração.»

 

Simões, António - António Simões : Personalidade e reflexões... Matosinhos : Cardume Editores, 2017. pp. 135-137

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