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És a nossa Fé!

Uma questão de paveias

Voltando aos tempos de miúdo...

Não havia tantos incêndios quando eu era miúdo. Talvez um dos motivos fosse porque, por necessidade, inexistência e falta de preocupação e também ignorância sobre princípios básicos de higiene e salubridade, havia a necessidade de utilizar material para algumas situações, por exemplo o mato que espontaneamente cresce nos pinhais.

Este mato era usado para cobrir caminhos de terra batida no Inverno, prevenindo a lama onde de outra forma se atascariam as carroças e os carros de bois e os seus condutores e aqueles que a pé por ali transitassem. Era também utilizado nos chiqueiros de porcos e currais de ovelhas, de cabras e de vacas. Aquele mato era ouro, servindo até para queimar (chamuscar) os pelos dos porcos, depois da matança, de modo a poder ser raspada a pele do animal com mais facilidade. No final de utilizado, nalgumas circunstâncias, seria ainda usado como estrume. Dum material sem aparentemente qualquer valor, era retirada uma mais-valia enorme.

A época da roça iniciava-se no final da Primavera e estendia-se Verão adentro, executada de forma manual, com uma enxada rasa, ou seja sem bicos, por grupos de homens, debaixo de um calor "desgraçado".

O meu avô era um pequeno proprietário agrícola, com terrenos herdados e alguns arrendados, de onde retirava o sustento para a família. Apesar de nunca faltarem o porco na salgadeira e os enchidos no fumeiro, as galinhas e os ovos, o leite e o queijo das ovelhas, os vegetais e legumes da horta e o vinho e o pão das pequenas searas de trigo e ainda o azeite, por vezes os anos eram "sacanas" e havia a necessidade de ir "fora". Ir "fora", era trabalhar para um outro agricultor, era tentar suprimir as falhas que o tempo não permitira que vingassem nas suas propriedades. Às vezes até se trocavam "dias", "eu agora vou-te lá fazer este trabalho e tu depois vens cá fazer o que for preciso", era também assim, um mercado de trabalho de troca e partilha.

E assim assisti a muitas jornas de "roçar mato", nas férias grandes, num grupo de homens onde pontificava o meu avô e um personagem extraordinário, que para além disso me adorava, o "Talego", António de seu nome, que apesar da dureza do trabalho nunca perdia o sorriso e nunca deixava de mandar os seus dichotes que faziam a animação do grupo, valia-lhes isso.

A jorna era dura, o mato era acondicionado em paveias bem pesadas, que depois se haveriam de, usando uma forquilha de quatro dentes, carregar numa carroça ou carro de bois e armazenar para altura de necessidade. No final do dia de trabalho, era usual fazerem-se apostas sobre a quantidade de paveias que haviam cortado. Lembro-me de um dia assistir a uma cena extraordinária, se atentarmos a que o "Talego" era analfabeto: O meu avô perguntou-lhe "ó c'padre (todos se tratavam por compadres), quantas é que acha (também se tratavam todos por você) que fizemos hoje? Olhe, eu acho que fizemos p'raí duzentas." O "Talego" pensou um pouco, reflectiu, olhou bem o monte de paveias daquele mato, deu a volta e com a maior calma do mundo respondeu: "Ó c'padre, é capaz de ter razão, devem ser p'raí duzentas... duzentas e uma..." e foi a gargalhada geral.

Pois, e vem isto a propósito de quê? Olhem, vem a propósito de que um homem do campo, analfabeto, olhando para uma evidência à sua frente, soube fazer um cálculo aproximado de um valor e de um número que não se afastava muito da realidade. Ele conseguiu, com o saber de experiência feito, não falhar muito num problema que lhe colocaram. Já outros, contemporâneos e letrados, conseguem escrever num jornal de referência que uma instituição precisa entre cem e duzentos milhões de euros para resolver os seus problemas; Pouca variação no cálculo, apenas entre um valor e o seu dobro, o que me levou a ter saudades do "Talego", que, coitado, já lá está há muitos anos, mas conseguiu ser mais clarividente na sua "analfabetice" do que alguns gurus da finança que se pavoneiam por aí.

Se calhar do que a gente precisava era mesmo de um "Talego". Ou pelo menos de alguém que saiba contar "paveias".

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