Um nacionalismo às avessas
Nem de propósito. Manifestava eu ontem a minha perplexidade por haver tanta gente - sportinguistas incluídos - a jurar que Maradona tinha sido o melhor futebolista de sempre, quando temos o Cristiano Ronaldo felizmente vivo, com saúde e ainda a jogar com a qualidade que sabemos: leva 79 golos marcados pela Juventus, acaba de marcar mais dois, neste ano civil já facturou 42 e tem um impressionante total de 474 somados ao serviço do emblema italiano, do Manchester United e do Real Madrid, colossos do futebol mundial. E marca de todas as formas: com o pé direito, com o esquerdo e de cabeça, dentro da área e de meia-distância, de bola parada e em lances corridos. É detentor de cinco Bolas de Ouro, nenhuma delas alcançada por favor ou por acaso.
Perguntava eu ontem, em jeito de perplexidade, o que tem a mais o falecido astro argentino que nasceu em ambiente de pobreza e levou a selecção do seu país ao colo no Mundial de 1986 (dando-lhe até uma célebre mão, ilegal em futebol, no jogo contra a Inglaterra) do que tem Pelé, igualmente nascido numa família muito pobre e se sagrou tricampeão mundial. Ou que o italiano Paolo Rossi, falecido também há dias, e que levou a selecção do seu país ao colo (sem golos com a mão) no Mundial de 1982. Ou que o Cristiano, outro imenso profissional do futebol oriundo de uma família desfavorecida e que superou esse estigma com muito trabalho, muita tenacidade e a preciosa ajuda da formação sportinguista, começando por esse incansável descobridor de talentos que é mestre Aurélio Pereira.
Nem de propósito, dizia eu. Horas depois, a France Football anunciava a sua sempre ansiada escolha para o ano prestes a terminar. Desta vez não há Bola de Ouro, mas onze menções douradas, correspondentes a diferentes posições no terreno: foi eleito o melhor onze da história do futebol. Numa alusão evidente a um facto por vezes esquecido: o futebol é um desporto colectivo, no relvado ninguém consegue nada sem o esforço dos colegas.
Lá estão Pelé e Maradona, claro. Como estão o russo Iachine, o espanhol Xavi, os alemães Beckenbauer e Matthäus, o italiano Maldini, os brasileiros Cafu e Ronaldo. Lá está o genial Messi, compatriota de Maradona. Faltam outros, como Di Stefano ou Iniesta - já sem falar em Puskás, Charlton, Zidane e Pirlo: um onze não dá para todos.
Mas o que me interessa salientar é a presença de Cristiano Ronaldo neste onze ideal da história do futebol, eleito com a chancela de uma das mais prestigiadas publicações da modalidade. O nosso Cristiano - o pronome possessivo neste caso tem duplo significado, pois alude não só à nacionalidade mas também à filiação clubística do artilheiro da Juve.
Ele mesmo, infelizmente, ontem tão denegrido nesta caixa de comentários. Até por gente que se intitula sportinguista. Ao contrário dos argentinos - que idolatram até ao desvario os seus símbolos nacionais - nós, portugueses, praticamos um nacionalismo às avessas: quanto mais afinidades temos com certa figura de fama planetária, quanto mais perto ela está de nós, mais facilmente a denegrimos. E é quase sempre lá fora que lhe prestam justiça.
Nem por ser tão frequente esta evidência se torna menos triste.