Toupeiradas
Quando eu era miúdo havia na minha terra, no tempo da ditadura e de grande miséria, outros que, coitados, não tendo os pais posses para lhes comprarem um par de sapatos decente, guardavam o que tinham, feito pelo sapateiro da terra com solas de rasto de pneu e gáspeas de serrubeco ("sarrueco" naquelas bandas) para usarem de inverno, quando o chão estava gelado que queimava e o acto de ir à escola era suavizado por duas pedras de seixo que haviam ficado nos restos da lenha do fogo e que viajavam enrolados em trapos dentro de cada um dos bolsos, bastante puídos as mais das vezes, das calças aos remendos. Não estou a efabular, eu felizmente não fui vítima desta "apagada e vil tristeza", mas convivi bastante chegado com quem foi. Ora esta rapaziada, logo que chegava a Primavera e a geada deixava os caminhos, usava o seu calçado de "eleição", pés descalços pois então, que sandálias era um luxo a que não chegavam e de quando em vez, nas correrias pelos campos fora, ou nas grandes peladas do futebol do muda aos cinco e acaba aos dez, lá acontecia uma enorme topada e lá ficava a desgraçada da vítima incapacitada para uns largos dias das férias de mais de três meses.
Mas isto tem a ver com o quê, perguntarão e muito bem. Pois havia um daqueles miúdos, um pouco desastrado para o jogo da bola e mais propenso a chutos no chão, que volta e meia mandava uma "toupeirada" (na sua concepção) no chão de tal forma que, desgraçado, andava sempre de dedão entrapado. Curiosamente aquele miúdo é hoje um belo electricista de automóveis, profissão que começou a aprender aos catorze anos logo depois de concluir a 4.ª classe aos onze e ter "estagiado" três anos nas obras, alombando com baldes de massa de vinte quilos às costas sobre andaimes cuja sustentabilidade era mais ou menos comparável à situação do Benfica no caso, precisamente e nem a propósito, apelidado de toupeira. Este "miúdo" é benfiquista, é meu amigo e as suas "enormes" actuações nos derbis de rua em que a cada muda aos cinco e acaba aos dez ele era um dos seus ídolos dos encarnados, o Eusébio, quase sempre e apesar da falta de jeito, o Coluna, o Jaime Graça que "era" tantas vezes por coincidência de apelidos e até o Zé Henriques, quando um dos dedos andava entrapado e tinha que ser remetido para o "infame" lugar de guarda-redes, este miúdo hoje homem feito com quase sessenta anos, meu amigo, benfiquista, não merece que o seu clube do coração lhe faça esta sacanice.
Porque falo disto? Precisamente porque este foi um desabafo do meu amigo, um destes dias quando fui a Tomar, à aldeia, à volta dum petisco e dum belo tinto. Foi aí que me lembrei das suas "toupeiradas" e a resposta foi "mas aí era a brincar, ó Edmundo, isto envergonha qualquer benfiquista que se preze."
Haverá muitos como ele e com o mesmo sentimento.