Houve Pirlo, claro, cujo apogeu viu-se no dia 24 de Junho de 2012. No desafio entre a Itália e a Inglaterra, Pirlo jogando como dizem que Manolete lidava as feras, quase sem mexer os pés, executou 146 passes, dos quais 80% (117) foram bem entregues. Nessa tarde mágica, a inteligência de Pirlo, que era a de estar sempre no lugar certo no instante exacto, metamorfoseou-se numa espécie de presciência sobrenatural, que consistia em vê-lo atrair a si os percursos da bola, devolvendo-a depois ao jogo, ao futebol, ao universo, em perfeito estado de mansidão e domínio. É provável que nas próximas décadas nunca mais se volte a ver prodígio igual. Isto para dizer que àqueles que se limitam a serem apenas excelentes jogadores e não semi-deuses do futebol, como Adrien Silva, arcar com a posição 8 exige muito suor, ânimo e discernimento. Porque sobre as suas qualidades naturais ele mostra estas aptidões, Adrien é uma peça insubstituível no Sporting. Alarmante é que saíndo Adrien entra Elias. Ora aqui está um que tem uma habilidade especialíssima: a de conseguir ser o buraco negro simétrico da estrela Pirlo. Por malas-artes e não menos má-fé, em qualquer momento do jogo Elias consegue posicionar-se criteriosamente longe do percurso da bola. Durante a segunda parte com o Feirense, na atmosfera de naufrágio que se começou a respirar, quedei-me fascinado, como o passarinho pela cobra, pelo serpenteio de Elias no estreito perímetro em que se acoita. Com a deliberada persistência de um coveiro ele vai descarnando uma clareira no meio do campo e, sempre a esbracejar com toda a gente, desorientando os parceiros, que não sabem o que fazer nem como vencer tamanho vazio. Elias não é passivo, pelo contrário, de mansinho, mostra-se como um Iago, activamente aplicado em destruir o jogo do Sporting. Já me garantiram que ainda por cima lhe pagam como a qualquer outro jogador.
«Pirlo recebe sempre a bola com espaço (a maior especialidade dele é procurar o ângulo para poder receber a bola) e tem sempre tempo para a passar. Quando o apertam ele não precisa de fintar porque a passa antes disso. Nasceu demasiado cedo: no passado ainda deixavam fazer tackles demasiado fortes. Hoje, com a protecção que existe aos artistas, Pirlo vive a sua era dourada.»
Nada me faz apreciar tanto uma partida de futebol como um rasgo de inteligência.
Aconteceu esta noite, quando iam decorridos 35' do Inglaterra-Itália, disputado nesse monumento ao desperdício brasileiro que é o novo estádio de Manaus. Na marcação de um canto, a bola é cruzada em diagonal do ângulo superior direito do ataque italiano, supostamente para Andrea Pirlo, situado a poucos metros da área inglesa. Contrariando as expectativas, Pirlo não retém a bola: deixa-a seguir propositadamente para Marchisio, uns metros atrás e em melhor posição para desferir o remate. Assim acontece: com um pontapé seco e bem colocado, o italiano põe a sua selecção a vencer.
Era um dos desafios mais difíceis para a squadra azzurra. Desafio superado com êxito: a equipa inglesa, bem apetrechada e com sólido dispositivo táctico, ainda empatou a remate de Daniel Sturridge após boa abertura de Wayne Rooney. Mas os italianos traçaram o destino do encontro num golo que Balotelli marcou de cabeça, com assistência de Candreva.
Pirlo, de 35 anos, é um dos raros sobreviventes do onze italiano que venceu o Mundial de 2006. Depois disso, muitos outros jogadores cheios de talento despontaram no patamar mais elevado da modalidade. Mas, quase como uma relíquia de outras eras, ele mantém intactas as características que o notabilizaram: mestre da finta em espaço curto, especialista em passes longos que produzem soberbas variações de flanco, dotado de uma excepcional visão de jogo, ele é sobretudo a inteligência em movimento. Como aliás ficou bem patente na forma superior como marcou um livre, já no período suplementar da segunda parte, fazendo a bola embater na barra: se fosse uns centímetros mais abaixo a Itália ampliaria os números desta vitória. Por momentos o guarda-redes Joe Hart deve ter revivido os quartos-de-final do Euro-2012, quando um penálti marcado por Pirlo eliminou a Inglaterra.
Um desporto colectivo, como é o futebol, não dispensa - antes exige - a explosão de talentos individuais daqueles jogadores que fazem realmente a diferença. Como sucedeu naquela simulação de Pirlo que abriu espaço ao golo inicial dos italianos, baralhando por completo as marcações inglesas. E rasgando assim o caminho que conduziu ao triunfo. Numa clara demonstração, como observou o jornal El País, de que pratica a "arte de pensar com os pés".
A maior figura do dia de ontem emergiu inesperadamente do Costa Rica-Uruguai: Joel Campbell, o ponta-de-lança costarriquenho que marcou o primeiro dos três golos da sua equipa, derrotando de forma categórica a selecção que ficou em quarto lugar no Mundial de 2010.
Quase no fim do encontro, Campbell foi agredido por Maxi Robocop Pereira, que entendeu praticar no Mundial a sua concepção muito pessoal de desporto, cruzando futebol com artes marciais. Ao contrário do que por cá sucede, o árbitro aplicou a lei, mostrando-lhe o cartão vermelho. Nada a ver com os brandos costumes da pátria lusa, onde só falta os árbitros pedirem baldes de pipocas para verem, embevecidos, o Robocop uruguaio em acção.
O presidente da FIFA, como o Rui Gomes já aqui assinalou, lembrou-se agora de criticar o recurso aos penáltis como forma de decidir qualificações para fases seguintes de torneios ou mesmo a conquista de alguns dos mais prestigiados troféus internacionais no futebol. Salvo melhor opinião, Joseph Blatter escolheu uma péssima ocasião para o efeito. Diz ele que as grandes penalidades são "uma tragédia" e fazem perder "a essência do futebol enquanto jogo colectivo". É inaceitável que fale assim poucos dias após um dos melhores golos do Campeonato da Europa ter sido marcado precisamente de penálti, pelo excelente Andrea Pirlo, campeão do mundo em 2006, actual campeão de Itália pelas Juventus e um dos mais fantásticos jogadores do Euro 2012, que termina hoje, em Kiev, com o jogo Espanha-Itália.
"A arte de jogar com os pés": foi desta forma certeira que El País qualificou o talento de Pirlo, único jogador até agora eleito o melhor em campo em três partidas deste Europeu. As palavras impressas no jornal espanhol, apesar de terem sido escritas antes das declarações de Blatter, parecem ter sido especialmente dirigidas para ele: "Apesar de ser um desporto de equipa (...), o futebol exige um gesto egoísta por excelência, um momento de glória pessoal, uma jogada para a posteridade, a fim de [um jogador] passar à condição de celebridade. Não é nada simples encontrar um momento tão solene e tão íntimo sem atraiçoar a condição de futebolista solidário admirado em todo o mundo."
Pirlo teve o seu momento nesse terceiro penálti contra os ingleses que deu ânimo aos italianos e destroçou psicologicamente a equipa adversária. Segundos antes, a squadra azzurra afundava-se naquele dilacerante embate dos quartos-de-final terminado num empate nulo. Segundos antes, o guarda-redes inglês Joe Hart parecia imbatível. A grande penalidade marcada "à Panenka", que eleva um simples penálti à condição de obra de arte, virou o destino da partida e tornou Pirlo um sério candidato à Bola de Ouro de 2012 (único dos mais cobiçados troféus ainda não conquistado por este ex-campeão europeu pelo Milan que também venceu o Mundial de Clubes em 2007). Tem a certeza de que um penálti é uma tragédia, senhor Blatter?).
Mestre da finta em espaço curto, especialista em passes longos que produzem soberbas variações de flanco, dotado de uma excepcional visão de jogo, Pirlo assume-se como comandante natural da selecção italiana - algo que falha noutras equipas. E voltou a ser fundamental na concludente vitória italiana das meias-finais contra a favorita Alemanha, conduzida à vulgaridade pelos seleccionados de Cesare Prandelli. Nesse jogo, disputado dia 28 em Varsóvia, a Itália não se limitou a ganhar: também deslumbrou pelo seu futebol inteligente e requintado. Com dois grandes golos de Balotelli, na sequência de excelentes passes de Cassano e Montolivo. E poderia ter ampliado a vantagem no festival de golos perdidos ocorrido na segunda parte, com Marchioso e Di Natale a falhar de forma tão clamorosa como Cristiano Ronaldo no último minuto da nossa meia-final disputada com os espanhóis.
Os espanhóis - que o presidente da UEFA, Michel Platini, pretendia desde o início ver na final disputada mais logo no estádio olímpico de Kiev - não terão tarefa fácil contra a equipa que mais tem corrido neste Europeu, sob arbitragem de Pedro Proença. Andrea Pirlo sabe, de facto, pensar com os pés. E consegue pôr o resto da equipa a pensar como ele.
Às vezes julgo que deliro, que só eu vejo as coisas de determinada maneira. Vou então à procura de outras vozes que me confirmem ou desmintam. Ontem no IT vs. ENG estava pronto a jurar no fim que, apesar de aos anos que vejo futebol, nunca tinha visto ninguém no meio-campo fazer o que sistematicamente Pirlo fez. À Manolete, quase sem sair do lugar, dois passos curtos e lentos e um passe, ora de 40 metros (juro!) ora de 5, que aceleravam o jogo, entornavam os ingleses todos para um lado atrás daquela bola e punham o universo inteiro a girar à volta dele.
Hoje descobri o quadro acima publicado aqui. Haja uma alma caridosa que me diga se já alguma vez na história do futebol, a este nível, houve uma estatística assim.
Pirlo tem 33 anos de idade, Buffon 34. Repararam na serenidade com que este comandava a equipa, o panache com que respeitava os adversários, o ânimo que punha nos camaradas com um gesto, a certeza que dava?
Há jogadores assim, como os aviadores: milhares de horas de futebol naquelas pernas só lhes trazem vantagem.
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