A Glória dos Oitavos
Antes de o campeonato do mundo se iniciar e agora, por maioria de uma razão muito prática e desenganada com risonha crueldade, tem sido abundantemente difundida nos órgãos de comunicação social a extraordinária tese de que, para Portugal, o que interessa, a vitória tão sonhada, é a superação da fase de grupos, ou seja o acesso aos oitavos de final. Este objectivo parece-me de uma tal pobreza e tão desligado do que deve ser o conceito mais rudimentar do espírito desportivo que chega a ser chocante. Esta tese implicará que uma selecção forte, dirigentes federativos respeitados, jornalistas sagazes, centenas de comentadores certificados e patrióticas vagas de portugueses histericamente entusiasmados, todos eles portadores de um orgulho inflamado pelas qualidades e pela chama de um grupo que parecem considerar o melhor, ou quase, do mundo, se satisfarão com a vitória frente ao Gana e aos Estados Unidos, esses dois colossos lendários, como bem se sabe, do futebol mundial. Todos eles se satisfarão, portanto, com muito menos do que o triunfo final, o verdadeiro triunfo. A não ser que, imbuídos de imaculado espírito olímpico, se contentem com estar presentes. Mas, então, por que pedir os oitavos de final?
Isto, como é óbvio, não é de agora. Já estamos habituados a ganhar sempre e, assim o queira a divina providência, havemos de continuar. Fomos dos piores, mas ganhámos o campeonato da descida, perdemos mas fomos à final, fomos tosquiados mas merecíamos o triunfo, levámos seis mas o resultado não espelha o que se passou em campo, o adversário ganhou não por ter exibido qualquer mérito digno de ser assinalado mas por uma falha de marcação da nossa defesa, etc…etc…etc.. Sempre a falta do mais elementar espírito desportivo ou, o que é o mesmo, o engrandecimento injustificado de desempenhos pouco felizes. Nunca deixa de aparecer qualquer coisa que ensombre a vitória do adversário. Apesar de tudo o que se viu no jogo com a Alemanha, ainda vai surgindo quem, envergonhadamente, é verdade, não consiga furtar-se a um breve e embaraçado remoque ao árbitro, dizendo, ou titubeando, que este talvez não tenha errado mas que podia ter apitado de maneira diferente, que, vamos lá a ver, o Pepe até é bom rapaz, não valia a pena ir às do cabo por algo que bem pode não ter passado de um afago sem consequências de maior, que o penalty do João Pereira existiu, mas, enfim, se não tivesse sido marcado não era escandaloso, não se perdia nada, e mais uma série de vice-versas tendentes a apagar o que ficou escrito na pedra. Alheando-se estes tais, com generosa distracção, do facto de a única ocasião de golo da selecção portuguesa ter nascido de um fora-de-jogo não vislumbrado pelo árbitro (sou um apaixonado pelo verbo vislumbrar que, praticamente, não existe fora da linguagem do futebol, tencionando passar a utilizá-lo com prodigalidade sempre que a oportunidade se apresentar).
Nesta questão dos oitavos, voltamos ao mesmo. Quem ganhou foi este ou aqueloutro, mas, bem lá no fundo, o vencedor não ganhou mais do que nós, é preciso ver que as suas condições eram bem superiores e, portanto, tinha outras expectativas. Convirá notar que as nossas não eram propriamente baixas, eram, antes, adequadas à nossa dimensão, à nossa capacidade financeira, à nossa realidade demográfica, que não pode comparar-se à do Brasil ou à da Alemanha, e por aí fora, até sabe-se lá onde. Quer dizer, se passarmos aos oitavos de final, acabaremos como vencedores, tanto ou quase tanto como os vencedores propriamente ditos. Como defesa, talvez esta não seja a pior. Um pouco anti-desportiva e pouco convincente, temos que reconhecer, mas, enfim, não se pode ter tudo.
Estas considerações não entram em conflito com a minha opinião de que o Sporting, na última época, ao classificar-se em segundo lugar no campeonato, ficou com um forte motivo para se considerar satisfeito. Isto porque, em meu entender, essa satisfação não decorre do resultado desportivo em si, mas apenas do facto de este lhe permitir disputar a Liga dos Campeões, que poderá constituir a origem de renovada ambição, desde logo no plano financeiro. Agora quanto à dimensão desportiva do resultado, só um clube pode ter ficado contente, o vencedor, o Benfica. Abaixo de primeiro, desportivamente falando, para mim é tudo último. O que não é vergonha nenhuma, só um pode ganhar. É por isso que sempre tenho dito com toda a convicção: o Sporting, independentemente das suas dificuldades, tem que ser sempre candidato, porque a vitória não pode deixar de ser o seu objectivo, porque a busca da glória do vencedor é exigida pela sua história e pelo seu estatuto. É, também, por isso que elogiei como elogiei as primeiras palavras de Marco Silva como treinador do Sporting. Há muito quem se interrogue sobre o que acontece se não ganharmos, se não sofreremos mais uma derrota às mãos de um objectivo não cumprido. Para mim, essa questão não tem qualquer razão de ser, tenho até alguma dificuldade em compreendê-la. Não ganhámos, pronto. E daí? Não era muito pior não termos lutado pela vitória? Estará de acordo com a história do Sporting a renúncia à luta leal, firme e corajosa pelo triunfo? Como disse Marco Silva na sua apresentação O Sporting terá de ser, naturalmente, candidato ao título. Não faria sentido que fosse de outra maneira.
Deixemos, por isso, o esplendor dos oitavos para espíritos menos exigentes e esclarecidos e, no que respeita ao Sporting, mesmo em circunstâncias que tornem a vitória num objectivo quase utópico, procedamos de acordo com a sua grandeza, seguindo o conselho do famoso graffiti de Maio de 68: sejamos razoáveis, peçamos o impossível.