Nos jogos já bastante antigos da selecção nacional há dois golos que nunca me canso de ver.
Ambos marcados por Eusébio.
O primeiro em Bratislava, actual capital eslovaca, contra a Checoslováquia, numa das mais memoráveis partidas alguma vez disputadas pela equipa das quinas - a que nos conduziu ao Mundial de 1966, o primeiro da nossa história.
Aconteceu a 25 de Abril de 1965, vitória portuguesa por 1-0. Com a nossa selecção a jogar quase toda a partida com apenas dez jogadores (ainda não havia substituições naquela época) devido a gravíssima lesão, logo aos 4', do médio leonino Fernando Mendes que viria a abreviar-lhe o fim da carreira profissional, tinha ele apenas 27 anos.
O craque moçambicano, servido por José Augusto, conduz a bola durante 40 metros pelo corredor direito, supera três adversários e conclui da melhor maneira - ao jeito de Maradona 20 anos depois. Pode ser visto aqui, ao minuto 19'. Com locução do saudoso Rui Tovar.
O segundo ocorreu já nesse Campeonato do Mundo em Inglaterra, no épico confronto com o Brasil - ainda na fase de grupos - que vencemos por 3-1. Foi a 19 de Julho de 1966. Com dois futuros campeões mundiais no onze adversário: Brito e Jairzinho (subiriam ao pódio quatro anos depois), além do já bicampeão Pelé, que chegaria ao tri em 1970. Entre os nossos figuravam três ilustres Leões: Hilário, João Morais e Alexandre Baptista.
Simões, de cabeça, marcou o primeiro. Eusébio, os dois restantes. Aquele que mais retenho na memória - eu que vi com imenso gosto este jogo na íntegra só muitos anos depois - é sobretudo o nosso terceiro. Um tiro na ressaca de um canto disparado ao minuto 90 deste vídeo que fez entusiasmar o relator britânico: «Have you ever seen anything like that?»
E com razão.
Estas imagens deviam ser exibidas em várias palestras a jovens jogadores sobre a importância do golo no futebol.
Hoje tem estado tudo muito assanhado, a discutir o desempenho de Paulinho.
Percam (ou ganhem) um pouco de tempo, passem pelo sítio da Federação Portuguesa de Futebol.
A média de golos de Paulinho, pela selecção A, é superior à de Eusébio e à de Cristiano Ronaldo, não sou eu nem o Luís Lisboa que o dizemos, são os factos, a frieza dos números.
Vim a Lisboa. E fui até à estátua do King, Eusébio da Silva Ferreira, homenageando a memória do mais notável jogador que passou pelas escolas do antigo Sporting Clube de Lourenço Marques, actual Maxaquene.
"Não gosto do Sporting. No meu bairro, era um clube de elite, da polícia, que não gostava das pessoas de cor, era racista", garantia há dez anos em entrevista ao Expresso essa luminária chamada Eusébio da Silva Ferreira. Eusébio tinha todo o direito de não gostar do Sporting, mas ou tinha má fé ou deveria ser muito distraído. Segundo consta, Eusébio almoçava todos os dias no mesmo restaurante em Lisboa. Um restaurante bem caro, pelo menos para os meus padrões, e onde o serviço nem é nada de especial. Mas ainda hoje consta ser frequentado por conhecidos benfiquistas (e o Sporting é que é um "clube de elite"): presumo que, para se ter o melhor serviço, deva ter que se apresentar o cartão de sócio do glorioso.
Na noite da passada terça feira este restaurante estava no mais absoluto silêncio, como era de se esperar. Quem fazia a festa era um restaurante africano mesmo em frente, encostado à linha do comboio. Tudo decorria dentro da ordem, como deve ser nesta altura, sem nenhum problema ou risco especial, sob o olhar da polícia (que não sei se era "sportinguista"). Com música, imperiais e distanciamento. Os sportinguistas estavam na rua, e estendiam-se mesmo acima da passagem pedonal da linha do comboio, ornamentando-a como a fotografia ilustra. Mas o centro da festa ali era o restaurante africano.
O que diria o Eusébio se visse aquilo? Direi mesmo que passar por este bairro de Lisboa e comparar o restaurante "benfiquista" com o "sportinguista" serviria para desmontar muitos estereótipos.
«Guilherme Espírito Santo, são-tomense que por razões de deslocação dos seus pais se iniciou no futebol em Luanda, viria a ser, já com experiência de anos na equipa principal do Benfica, o primeiro negro a integrar a selecção nacional de futebol. Aconteceu em Novembro de 1937, num célebre Portugal-Espanha, primeiro duelo ibérico que a selecção nacional venceu. Há 83 anos!
Apenas em Novembro de 1978, ou seja, 41 anos depois da estreia de Espírito Santo, se estreou o primeiro futebolista negro na selecção inglesa: Viv Andersen, lendário jogador do Arsenal e do Manchester United, que aliás viria a tornar-se num militante lutador anti-racismo, lembrando, ainda recentemente, que "nos anos 70 os jogadores negros eram abertamente discriminados em Inglaterra".»
(...)
«Em Portugal a presença de jogadores negros nas equipas principais do futebol português e na selecção nacional traduziu-se por uma inteira aceitação de uma cultura aberta e multirracial do nosso povo. Jogadores como David Júlio, Hilário, Jordão, Dinis ou Salif Keita, no Sporting; Miguel Arcanjo, Jaburu, Juary ou Danilo, no FC Porto; Espírito Santo, Coluna, Eusébio ou Luisão, no Benfica, não apenas conquistaram estatuto de ídolos como promoveram a democracia racial como um hábito social saudável.
Nota especial, evidentemente, para Pelé, no Brasil, e Eusébio, em Portugal. Ambos foram determinantes na valorização social do homem negro, a pontos de se tornarem nos mais importantes embaixadores dos seus países, consagrados e admirados em todo o mundo. A influência de Pelé, apenas com 17 anos, na conquista do Mundial da Suécia (1958) ou a de Eusébio no sucesso português no Mundial de 1966, consolidaram o sentimento da tal democracia racial que o futebol promoveu como ninguém e me parece estruturante nas sociedades luso-brasileiras.»
Vítor Serpa, trechos de um texto intitulado "O racismo no futebol e na História"
À falta de melhor assunto, o antigo número 2 de Bruno de Carvalho, Carlos Vieira, lembrou-se agora de sugerir que «deveria haver no Museu do Sporting um espaço» para evocar Eusébio, tendo em vista que este jogador representou o Sporting de Lourenço Marques durante três temporadas, entre 1957 e 1960.
Concordam ou não com ele?
Na foto, Eusébio é o segundo a contar da direita, no primeiro plano
A "Mão de Deus" foi clara como água para mim, porque eu estava ao nível do relvado e com um ângulo de visão perfeito (...) Maradona (...) salta com o cotovelo dobrado e o punho cerrado. Eu vi a bola bater-lhe no punho e sair na direcção da baliza.
Em plena luz do dia, eu vi a mão do patife por cima da sua cabeça e vi-o a empurrar o diabo da bola para dentro da baliza.
Bobby Robson, pág. 152
Agora (...) posso contar (...) aquilo (....) que defini como a "Mão de Deus"... Não foi a mão de Deus, foi a mão do Diego! E foi como roubar a carteira aos ingleses, também...
Diego Armando Maradona, pág. 135
Jogadores como Eusébio, como Humberto Coelho, como Toni foram uns senhores dentro e fora dos relvados, alguém imagina algum dos três que referi, a gritar para o árbitro como uma menina histérica, a bater com a mão no braço e a pedir penalty num lance que, claramente, não o fora?
É quem mais lhes dói, o Cristiano Ronaldo. Saiu do Sporting para o Manchester, o Real Madrid, a Juventus. São encarnados, mas ficam verdes. De inveja.
Com Eusébio foi muito diferente: saiu do Benfica para andar a arrastar-se em clubes quase desconhecidos do Canadá, México e EUA. Terminou a carreira no União de Tomar. O clube lampiânico nunca mais o quis de volta.
Ronaldo - que na fase final da Liga das Nações marcou mais três golos pela selecção, onde já soma 88, mais 41 do que Eusébio - voltará a jogar pelo Sporting, nem que seja aos 40 anos. Com o aplauso unânime dos sportinguistas.
De facto, há coisas que nunca mudam: todos os anos o Benfica produz um "novo Eusébio" ou um "novo Cristiano Ronaldo". Eu ainda sou do tempo do Mantorras, por exemplo, mas para nos ficarmos só nos últimos três ou quatro anos já foram o Gonçalo Guedes, o Renato Sanches, o Ricardo Horta ou até o Mile Svilar (!?). Agora é o João Félix. O Vieira agradece. O pior é para os próprios (e para a nossa pachorra).
Cristiano Ronaldo já marcou mais golos (44) nas últimas 48 partidas que disputou pela selecção nacional do que Eusébio (41) nos 64 jogos totalizados ao serviço da equipa das quinas.
Um efusivo cumprimento entre Eusébio e Salazar (1966)
Eusébio da Silva Ferreira jogou de verde e branco em Moçambique, na filial n.º 6 do Sporting Clube de Portugal. Vinha em Dezembro de 1960 para Alvalade quando foi "desviado" para a Luz, com o beneplácito do regime salazarista-benfiquista, o que originou um prolongado corte de relações entre os dois clubes, só terminado em Maio de 1974.
Esta é uma das piores facetas reveladas pelos dirigentes do Benfica ao longo dos tempos. Incapazes de formar talentos com a qualidade dos nossos, há vinte anos sem fornecerem um só titular à selecção nacional de futebol, cobiçam os jogadores leoninos e tudo fazem para os desviar de rumo. Como o caso Eusébio bem demonstrou. E como a "pesca à linha" do Djaló peruano, no último defeso, viria lamentavelmente a confirmar, aliás sem qualquer proveito para eles.
Além disto, não têm qualquer pudor em copiar-nos.
Eis alguns exemplos, que confirmam isto:
- O Sporting Clube de Portugal foi fundado a 1 de Julho de 1906. O Sport Lisboa e Benfica só foi fundado a 13 de Setembro de 1908.
- A Juventude Leonina, claque mais emblemática do Sporting, foi fundada em 1976. A primeira claque encarnada, os Diabos Vermelhos, só apareceu em 1982.
- O Sporting tem futsaldesde 1985. O Benfica só tem futsal desde 2001.
- A Academia Sportingfoi fundada a 21 de Junho de 2002. A Academia do Benfica só foi fundada a 22 de Setembro de 2006.
- O Núcleo Sportinguista da Assembleia da República existe desde Maio de 2015. O equivalente a este núcleo no Benfica apenas surgiu em Abril de 2016.
É uma atitude própria dos cábulas, que adoram copiar.
Eusébio orgulhosamente vestido de verde e branco, na temporada 1958/59
A grandeza do nosso Sporting mede-se de várias formas, como ontem especifiquei aqui.
Os exemplos que indiquei estão longe de ser exaustivos. Porque esta grandeza mede-se também pelo facto de o único jogador do Sport Lisboa e Benfica que alguma vez alcançou reputação mundial traduzida em galardões, o saudoso Eusébio, ter sido formado não na cantera encarnada mas no Sporting de Lourenço Marques. Então filial n.º 6 do Sporting Clube de Portugal.
Eusébio da Silva Ferreira, campeão distrital e campeão provincial de Moçambique (1960) ao serviço do Sporting de Lourenço Marques, então filial n.º 6 do Sporting Clube de Portugal.
Aqui o vemos: saudosamente risonho, orgulhosamente vestido de verde e branco.
Não é nada fácil compararmos jogadores de épocas diferentes. Porque as mudanças registadas em cada década no futebol - do plano da organização táctica das equipas à preparação física, passando pelo acompanhamento clínico - é totalmente diferente. Mesmo assim, continuamos a assistir às incessantes comparações entre Eusébio e Cristiano Ronaldo com vista à designação do melhor futebolista português de todos os tempos. Com muitas opiniões favoráveis ao antigo goleador do Benfica, infelizmente já falecido. Sobretudo pela sua brilhante prestação no Campeonato do Mundo de 1966, em que Portugal surpreendeu tudo e todos com a conquista do terceiro lugar.
Não consigo acompanhar estas teses.
Eusébio conseguiu uma única proeza a nível de selecção. Essa mesmo, em 1966. De resto, com ele no activo, a selecção nacional falhou o apuramento para os Mundiais de 1962, 1970 e 1974. E falhou as presenças em todas as fases finais de europeus (1964, 1968, 1972). Além disso Eusébio jogou na selecção praticamente com a equipa do Benfica: as rotinas estavam mais que firmadas, os automatismos estavam mais que estabelecidos. Nada a ver com os tempos actuais, em que a selecção é uma manta de retalhos, com jogadores das mais diversas proveniências, alguns dos quais nem chegaram a jogar em Portugal. Cristiano Ronaldo participou em três Mundiais - chegando num deles, em 2006, às meias-finais, tal como Eusébio, mas com mais equipas em competição na fase final. E actuou em três Europeus: num deles (2004) fomos à final, noutro (2006) atingimos as meias-finais. Não há comparação possível. Com Eusébio, a regra era falharmos o apuramento. Com Ronaldo, a regra é conseguirmos o apuramento. Em 2014 queixámo-nos - e com razão - de termos caído na fase de grupos (após termos perdido contra a Alemanha, com apenas dez jogadores). Aos Mundiais de 1930, 1934, 1938, 1950, 1954, 1958, 1962, 1970, 1974, 1978, 1982, 1990, 1994 e 1998 nem lá chegámos. Antes de Cristiano Ronaldo. Depois de Ronaldo, não falhámos um.
Eusébio (terceiro à direita, em baixo) com a faixa de campeão de Moçambique em 1960
Ao contrário de alguns sportinguistas, tenho a maior admiração por Eusébio. Como tenho, em regra, por todos os futebolistas formados pelo Sporting ou por alguma das suas filiais.
Durante anos, comemos e calámos. Esse tempo acabou.
Vejo por aí algumas santas almas muito abespinhadas pelo facto de a direcção leonina ter decidido interromper o relacionamento institucional com o Benfica. Estranhamente para mim, algumas dessas almas são do Sporting. É o caso do advogado Carlos Barbosa da Cruz, que ontem se indignava na sua habitual coluna do Record contra o "isolacionismo sistemático prosseguido pela a[c]tual gestão do Sporting", que no seu entender não contribui para a "defesa adequada dos interesses do clube". Pressupondo-se, pela mesma lógica, que os interesses leoninos ficariam mais bem preservados com permuta de galhardetes e croquetes com o clube dirigido por Luís Filipe Vieira.
Barbosa da Cruz parece desconhecer um velho adágio popular muito português: quem não se sente não é filho de boa gente. Nos últimos dias o Sporting foi repetida e continuamente desconsiderado pelo velho rival, de forma inaceitável.
Repito alguns factos: uma faixa exibida durante todo o jogo de futsal Benfica-Sporting em louvor ao assassínio do sportinguista Rui Mendes, vitimado por um very light em 1996; engenhos incendiários atirados pela claque encarnada para a nossa bancada superior norte no final do Sporting-Benfica, domingo à noite; ausência dos indispensáveis pedidos de desculpas por parte da direcção benfiquista; provocação suplementar do director de comunicação dos encarnados, chamando "folclore" aos legítimos protestos do Sporting.
Bruno de Carvalho nas cerimónias fúnebres de Eusébio (Janeiro de 2014)
Durante anos, comemos e calámos. Esse tempo acabou, por mais que isso indigne um assumido benfiquista como o director-adjunto d' A Bola, José Manuel Delgado, que hoje - em sintonia com Barbosa da Cruz - escreve no seu jornal que "a decisão do Sporting de cortar relações com o Benfica não faz sentido".
Quanto mais alguns dizem e escrevem que isto não faz sentido, mais eu penso que faz. Por isso apoio esta decisão de Bruno de Carvalho. Tal como há um ano o aplaudi aqui quando encabeçou a delegação do Sporting que compareceu às cerimónias fúnebres de Eusébio da Silva Ferreira, que foi não só um símbolo do Benfica mas uma grande figura do futebol português. Confesso não me recordar o que na altura José Manuel Delgado e Carlos Barbosa da Cruz escreveram sobre o assunto.
Eusébio, jogador júnior de verde e branco em Lourenço Marques (Junho de 1958)
E a propósito de Eusébio: talvez muitos sportinguistas ignorem que por causa dele o Sporting - então presidido por Guilherme Brás Medeiros - cortou relações com o Benfica em 1960, situação que permaneceu inalterável até 1974, quando João Rocha entendeu restabelecê-las na sequência da Revolução dos Cravos.
O motivo para aquele corte? O Benfica desrespeitou um acordo de cavalheiros existente à época entre os dois clubes que obrigava cada um a não contratar jogadores às filiais do outro. Um pacto que os da Luz mandaram às malvas quando desviaram Eusébio do Sporting de Lourenço Marques para o Benfica, comprovando-se assim que nenhum acordo de cavalheiros é possível quando o cavalheirismo prima pela ausência.
Perdemos Eusébio, que nos teria dado muito jeito vestido de verde e branco, tal como antes dera ao Sporting de Lourenço Marques, onde o futuro King se sagrou campeão moçambicano com as nossas cores.
Mas não perdemos a dignidade. E recordo o adágio: quem não se sente...
Qual o balanço desportivo, em termos futebolisticos, desses 14 anos em que permanecemos de relações cortadas? Uma Taça das Taças (1964), quatro campeonatos nacionais (1962, 1966, 1970, 1974) e quatro taças de Portugal (1963, 1971, 1973, 1974).
Nove títulos, portanto. Não me parece nada mal. Imaginem se conseguíssemos algo semelhante nos anos mais próximos.
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