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És a nossa Fé!

Diário da Copa - O dia em que Marcelo foi herói

 

Ele chama-se Marcelo. Não quer dizer onde vive. É fácil adivinhar que a sua realidade não é a porta da frente, que nasceu do lado errado da cidade. De um dos demasiados lados errados de São Paulo.

 

É um mulatinho de calções curtos, pernas finas, cabelo crespo, olhos como a noite, brilhantes. Dá vontade de lhe perguntar o que esconde a atrás desses olhos. Tem 12 anos, diz, tamanho de nove, no máximo. Desde manhã cedo que peregrina pela Vila Madalena, bairro boémio de São Paulo que se tornou no epicentro dos festejos da Copa, com uma caixinha de cartão. Dentro da caixinha pacotes de balas (rebuçados) coloridas. Cada pacote um real. Marcelo, como a maioria dos meninos vendedores, não está lá sozinho, há toda uma rede por detrás. Mas disso também nao quer falar. Em São Paulo há mais de cem mil crianças e adolescentes, numa estimativa por baixo, que trabalham vendendo doces, panos de louça, engraxando sapatos, mendigando, fazendo malabarismos nos semáforos. A versão moderna da muralha medieval? Em São Paulo, como em Lisboa, é a janela do carro.

 

Marcelo, o menino desajeitado, entrou no José Menino Botequim, um bar na Mourato Coelho. Uma pequena subversão. A porta da frente é uma fronteira invisível. Entre os que podem pagar cem reais de entrada – com direito a cinco chopes ou duas caipirinhas – pelo privilégio de ver o Brasil jogar contra o Chile num écran plano, num ambiente “seleccionado”, vendo a rua a uma distância segura, e a rua. A rua, neste sábado, é compacta, tecida por homens e mulheres vestidos de verde e amarelo com as cabeças cobertas pelas mais inventivas variações de chapéus. O Inverno fez uma pausa. O calor é tão pesado que quase se toca com os dedos. Chove cerveja. Vuvuzelas, tambores, apitos.Uma explosão de som. Alegria seminal. Infernal.

 

Na mesa em frente à minha alguém vê o menino e prepara-se para o denunciar. “Trabalho infantil é crime”. “Deixa o menino ficar. Senta aqui”, diz um homem noutra mesa. São as pequenas delicadezas que dão sentido à vida. “Você quer alguma coisa?”. “Ver o jogo”, diz Marcelo. Tão pouco, tudo. Os anseios do  daquele menino eram iguais aos de todos no bar e o seu coração batia com o mesmo descompasso.

O Brasil empata com Chile. “Como vai ficar o jogo, Marcelo?”. “O Brasil vai ganhar. Vai ganhar sim”. Sopra com força na corneta amarela. Em torno todos riem com o menino. “Sou brasileiro com muito orgulho”, canta com uma voz que o corpo franzino não fazia supor. O bar chique enternece-se com o menino do morro. “Você vai dar-nos sorte?”. Enquanto se acredita no improvável há sempre uma oportunidade. “Dou sim”.

 

O Brasil vai a penaltis. De Roraima ao Rio Grande do Sul há uma nação suspensa das luvas de um goleiro com nome de imperador. “Assim ninguém vai poder dizer que o Brasil comprou a Copa, pô”. Deu Brasil e o menino chora. O bar abraça-se numa loucura. Um e outro e outro pegam no menino ao colo, atiram-no ao ar. “Você foi a nossa mascote. Nos deu sorte”. O bar compra a caixinha completa de balas ao Marcelo-mascote-herói e ainda paga o dobro. O Marcelo sorri, sorri sem reservas. Cumpriu um sonho “ver o jogo como os ricos da Vila (Madalena)” e hoje a mãe “não vai bater, nem chingar”.

O futebol inventou um jeito de igualar todos, pelo menos  por um dia.

 

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O dia em que Portugal "caiu fora"

Acabo de chegar da Casa de Portugal em São Paulo. Fui assistir sozinha ao jogo entre Portugal e o Gana.

Gosto de exercitar a dúvida - será que é mesmo assim? será que tudo está perdido? - e sou por natureza uma optimista. Acredito que há sempre um novo dia, vinte quatro horas em que nos podemos reinventar. E por isso quis acreditar num milagre. O taxista bem disposto lá foi dizendo "Portugal vai marcar, nê? Tem que" e me dá tchau com um sorriso do tamanhão do Brasil.

 

Embrulhada na bandeira, rodeada por "patricios", fiz promessas cabeludas - se a selecção se qualificasse beijaria todos os Manueis, os protagonistas das piadas sobre portugueses Brasil, que conheço - , coloquei um chapéu ridículo com um galo de Barcelos na cabeça - se todas as cartas de amor são ridículas o que dizer dos fanáticos (as) pelo futebol -  e desejei muito a vitória.

Desejar, verbo intransitivo, é a insatisfação que nos faz mover, estar a caminho. Mesmo sabendo que o Happy End pode não se concretizar resta a hipótese. Ainda que os momentos de felicidade escorram por entre os dedos como areia, sejam auto-golos, ou aqueles que o Ronaldo não celebrou (infelizmente porque aqueles abdominais deixam saudades). Aprendi com o meu pai, que chorava a cada golo, que os sonhos não devem ser desperdiçados.

 

Tantos se esquecem de viver o quotidiano, as pequenas alegrias, em troca dessa quimera chamada perfeição. Se a vida fosse um "comercial", um desses geniais da Skol, o "craque", transportando  a esperança de tantos na ponta dos pés, teria marcado, um e outro e outro golo fantásticos, levando ao êxtase as arquibancadas. Porém na vida, aquela a sério, não a do photoshop, há mais príncipes encantados a transformarem-se em sapos do que sapos a transformarem-se em príncipes encantados. Ou dito de outra forma, os dias são imperfeitos, como as famílias, os filhos - surpreendo-me sempre com o que sinto quando me despeço da minhas filhas e sobre como é possível gostar tanto, tanto - ou um grande amor. É essa imperfeição, são esses cantos que às vezes ferem que nos recordam que estamos vivos e nos fazem mover. Desejar, verbo intransitivo. Escolher como olhamos para a vida é um acto de liberdade.

 

E o que é isto tudo tem a ver com a Copa? Tudo. Porque "futebol se joga na alma./ A bola é a mesma: forma sacra/para craques e pernas-de-pau. /Mesma a volúpia de chutar /na delirante copa-mundo/ ou no árido espaço do morro".

 

O futebol é assim. Cheio de desimportâncias. 

 

Enfim, reconciliei-me com o Ronaldo. Lembro-me que o Baggio, o melhor do mundo em 1993, falhou o penalti decisivo contra o Brasil, Ronaldinho, o melhor do mundo 2005, não fez um único golo na Alemanha em 2006, Messi, o melhor do mundo(gassppp como me custa escrever isto) passou o Mundial da África do Sul sem marcar e viu a Argentina ser afastada pela Alemanha por 4 a 0. Para o Ronaldo "aquele abraço" e agora só tenho de resolver um dilema, uma vez que vou estar até à final no Brasil: apoiar esse amável Brasil (que amo tanto), apoiar a rainha má Alemanha (a minha pátria afectiva) ou torcer por um underdog ou uma underbitch (a Grécia não, a Grécia não).

 

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Divagações várias que passam por Ronaldo*

 

Desconfiar do óbvio e recusar a banalidade foi talvez a mais importante lição que o jornalismo me ensinou. Treinou-me também no exercício contínuo de resistência e apreciar como uma pedra rara a generosidade.

Por ser jornalista tive, tenho, o privilégio de conhecer diferentes geografias e ouvir a narrativa de muitas vidas sofridas, alquebradas, submissas, remediadas, abastadas, desfeitas, refeitas.

 

Pode parecer cínico porém aprendi a conceder que o sofrimento faz parte da condição humana. Que algumas vidas são um desejo que nunca se concretizará. Que outras nunca encontram o cadeado invisível que as amarra. Nunca consegui deixar de me comover, de sentir a garganta a contrair-se num nó apertado e de chorar de impotência.

Aprendi a admirar os que não procuram álibi, os que navegam na contramão e os que têm a capacidade de superar o sofrimento, a dor, de a sublimar em criação ou em dádiva.

Tantas e tantas vezes me atravessa a mente a imagem daquela mãe, num país africano, que me ofereceu um filho. Há generosidade maior que uma mãe prescindir de um pedaço de si para se agarrar à bóia dos desesperados que é a promessa de uma vida melhor para o filho?

 

Falando de desespero. A Folha de São Paulo publicou um trabalho da repórter e escritora brasileira Eliane Brum sobre os meninos sem tempo. Um menino com nome de poeta dizia “não conto [o tempo]. Eu não conto a alegria e não conto a tristeza. Tenho o tempo que estou na vida”. Vinicius, o menino da Favela do Bom Jardim, em Fortaleza, vive com dois irmãos e nenhum adulto. Os pais perderam-se. Crack. Cachaça. Vinicius da favela enfeitada com bandeirinhas verde e amarelas, como tantas outras por esse Brasil-continente fora, aos 15 anos não desaprendeu de chorar. Trabalha de dia, cuida da irmã de nove anos, e de noite vai para a escola de bicicleta. Driblando os traficantes. “Quando eu jogo futebol esqueço tudo”. Esse é o poder do futebol – o genuíno, não o da FIFA e dos seus milhões – e a sua generosidade. A de transformar a vida implacável de um menino num momento fugaz de alegria.

 

PS- Sabem porque admiro o Cristiano Ronaldo? Não é por ser apenas o Apolo musculado de abdominais perfeitos ou pela sua forma poética de jogar. Mas porque vejo no fundo dos olhos do futebolista o menino pobre, que saiu da Madeira aos dez anos, perseguindo um sonho e cumprindo um talento, com muito trabalho e muitas lágrimas. Esse menino no fundo dos olhos de Ronaldo é muito mais fascinante e complexo que o herói, é o Ronaldo-menino que inspira milhões de outros meninos por esse mundo fora. Fá-los sonhar, parar o tempo e ser felizes, ainda que por pouco tempo. Contam-se pelos dedos de uma mão os que têm este poder.

 

*Texto que publiquei no meu blog pessoal e que replico aqui, peço desculpa, porque já não suporto as críticas ao CR7. O D. Sebastião ficou entre as brumas.

{ Blogue fundado em 2012. }

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