Alguns continuam a uivar por aí, clamando contra o futebol "defensivo" da selecção nacional. Não sei onde é que esta gente andou nos últimos anos e que espectáculos de futebol a nível de selecções pôde espreitar ultimamente.
Pois eu vi isto: Portugal foi a única selecção que marcou um golo nas duas mais recentes finais entre clubes no futebol de alta competição.
A 27 de Junho, na final da Copa América em que se defrontaram Argentina e Chile, a partida terminou empatada a zero ao fim de 120'. Teve de se recorrer ao desempate por penáltis, com vitória chilena.
A 10 de Julho, na final do Campeonato da Europa, também os franceses ficaram em branco após duas horas de jogo.
Destas quatro selecções, só Portugal marcou. A tal selecção "defensiva" foi capaz de concretizar aquilo que nem a Argentina de Messi nem o Chile de Vidal nem a França de Griezmann fizeram.
Não sei se você viram. Eu dei-me ao incómodo de ficar acordado madrugada adiante para assistir à final da Copa América, disputada entre a Argentina e o Chile, apitada por um ridículo árbitro brasileiro que fez tudo para ser protagonista do encontro. Um jogo vibrante, de luta acesa, com as duas equipas a querer ganhá-lo - tanto que dois jogadores foram expulsos, um de cada lado (o argentino foi o nosso bem conhecido Rojo, galardoado com o cartão vermelho aos 41').
Apesar da intensidade e da velocidade, o nulo manteve-se no tempo regulamentar, forçando o prolongamento. Aqui uma defesa do outro mundo do guardião Claudio Bravo - uma das melhores que já vi até hoje em muitos anos como espectador de futebol - voando aos 99' para desviar um cabeceamento de Aguero manteve intactas as aspirações do Chile, com Arturo Vidal, Eduardo Vargas e Alexis Sánchez igualmente em grande nível.
Minuto 99: Bravo salva o Chile
Vieram então os penáltis. Vidal, primeiro chamado a converter, atira com insuficiente pontaria, permitindo a defesa de Romero. Segue-se Messi, com toda a Argentina suspensa do seu pé esquerdo. E o que sucedeu então? O astro do Barcelona dispara... por cima da baliza. Na hora da verdade, falhou.
O Chile conquistou assim com mérito o seu segundo troféu consecutivo. O mesmo troféu que escapa desde 1993 à selecção argentina, campeã desde então das finais perdidas. Já lá vão sete: quatro vezes na Copa América (2004, 2007, 2015, 2016), duas na Taça das Confederações (1995 e 2005) e uma no Campeonato do Mundo (2014).
Há quem lhe chame maldição. O facto é que Messi, o incomparável Messi, o "melhor do mundo" na opinião de muitos portugueses, falhou. E apressou-se a declarar que não voltará a vestir a camisola da equipa argentina: "A selecção acabou para mim."
Mero amuo momentâneo ou promessa para cumprir? O tempo dirá.
Enquanto a questão não se esclarece, aqui ficam os merecidos parabéns ao Chile. E fica também esta final como registo para todos os nossos compatriotas - e são demasiados, na minha perspectiva - que adoram menosprezar Cristiano Ronaldo, empolando cada pequeno falhanço do melhor jogador português de sempre enquanto se derramam em elogios a Messi, como se 'La Pulga' fosse infalível.
Ele chama-se Marcelo. Não quer dizer onde vive. É fácil adivinhar que a sua realidade não é a porta da frente, que nasceu do lado errado da cidade. De um dos demasiados lados errados de São Paulo.
É um mulatinho de calções curtos, pernas finas, cabelo crespo, olhos como a noite, brilhantes. Dá vontade de lhe perguntar o que esconde a atrás desses olhos. Tem 12 anos, diz, tamanho de nove, no máximo. Desde manhã cedo que peregrina pela Vila Madalena, bairro boémio de São Paulo que se tornou no epicentro dos festejos da Copa, com uma caixinha de cartão. Dentro da caixinha pacotes de balas (rebuçados) coloridas. Cada pacote um real. Marcelo, como a maioria dos meninos vendedores, não está lá sozinho, há toda uma rede por detrás. Mas disso também nao quer falar. Em São Paulo há mais de cem mil crianças e adolescentes, numa estimativa por baixo, que trabalham vendendo doces, panos de louça, engraxando sapatos, mendigando, fazendo malabarismos nos semáforos. A versão moderna da muralha medieval? Em São Paulo, como em Lisboa, é a janela do carro.
Marcelo, o menino desajeitado, entrou no José Menino Botequim, um bar na Mourato Coelho. Uma pequena subversão. A porta da frente é uma fronteira invisível. Entre os que podem pagar cem reais de entrada – com direito a cinco chopes ou duas caipirinhas – pelo privilégio de ver o Brasil jogar contra o Chile num écran plano, num ambiente “seleccionado”, vendo a rua a uma distância segura, e a rua. A rua, neste sábado, é compacta, tecida por homens e mulheres vestidos de verde e amarelo com as cabeças cobertas pelas mais inventivas variações de chapéus. O Inverno fez uma pausa. O calor é tão pesado que quase se toca com os dedos. Chove cerveja. Vuvuzelas, tambores, apitos.Uma explosão de som. Alegria seminal. Infernal.
Na mesa em frente à minha alguém vê o menino e prepara-se para o denunciar. “Trabalho infantil é crime”. “Deixa o menino ficar. Senta aqui”, diz um homem noutra mesa. São as pequenas delicadezas que dão sentido à vida. “Você quer alguma coisa?”. “Ver o jogo”, diz Marcelo. Tão pouco, tudo. Os anseios do daquele menino eram iguais aos de todos no bar e o seu coração batia com o mesmo descompasso.
O Brasil empata com Chile. “Como vai ficar o jogo, Marcelo?”. “O Brasil vai ganhar. Vai ganhar sim”. Sopra com força na corneta amarela. Em torno todos riem com o menino. “Sou brasileiro com muito orgulho”, canta com uma voz que o corpo franzino não fazia supor. O bar chique enternece-se com o menino do morro. “Você vai dar-nos sorte?”. Enquanto se acredita no improvável há sempre uma oportunidade. “Dou sim”.
O Brasil vai a penaltis. De Roraima ao Rio Grande do Sul há uma nação suspensa das luvas de um goleiro com nome de imperador. “Assim ninguém vai poder dizer que o Brasil comprou a Copa, pô”. Deu Brasil e o menino chora. O bar abraça-se numa loucura. Um e outro e outro pegam no menino ao colo, atiram-no ao ar. “Você foi a nossa mascote. Nos deu sorte”. O bar compra a caixinha completa de balas ao Marcelo-mascote-herói e ainda paga o dobro. O Marcelo sorri, sorri sem reservas. Cumpriu um sonho “ver o jogo como os ricos da Vila (Madalena)” e hoje a mãe “não vai bater, nem chingar”.
O futebol inventou um jeito de igualar todos, pelo menos por um dia.
A imagem de Xavi Hernández, sentado no banco de suplentes durante todo o jogo, era bem sintomática do fim de ciclo a que acabámos de assistir em directo: o melhor intérprete do tiki-taka espanhol assistia, impotente, ao naufrágio da equipa campeã mundial e bicampeã europeia. Uma equipa de que ele foi um dos intérpretes de excelência mas que a partir de hoje pertence ao passado.
A intrépida Roja que maravilhou o mundo com o seu futebol de alta voltagem e qualidade indiscutível não chegou sequer a comparecer no Mundial do Brasil. Após a copiosa derrota frente aos holandeses (1-5), os homens comandados por Vicente del Bosque voltaram a baquear (0-2), desta vez frente ao Chile. O seleccionador não teve coragem de operar a mudança radical que se impunha: o próprio Casillas, reduzido a uma caricatura de si próprio, manteve o lugar cativo na baliza espanhola.
Fica a lição para Paulo Bento: Portugal só superará o próximo obstáculo, contra os Estados Unidos, se o nosso onze titular foi substancialmente diferente daquele que sofreu quatro golos sem resposta frente à selecção alemã.
No jogo de hoje, disputado no mítico Maracanã, o Chile foi sempre uma equipa mais compacta e bem organizada, capaz de travar a fúria espanhola, que aliás mal compareceu em campo. Os dois golos da vitória chilena surgiram cedo, ainda na primeira parte. Mas nem assim Del Bosque foi capaz de apostar decisivamente no ataque, limitando-se a trocar jogadores para as mesmas posições à medida que o cansaço físico ia tornando cada vez mais ineficaz o processo ofensivo da selecção que ainda conserva o título de campeã do mundo.
Também neste aspecto o Chile-Espanha deve servir de lição para Paulo Bento: não basta mudar jogadores - é preciso alterar o sistema táctico. Porque Portugal não precisa apenas de vencer no próximo domingo. Precisamos de marcar vários golos, que nos poderão ser preciosos como critério de desempate.
Do inapelável naufrágio da equipa espanhola, que jogou sempre desligada e com um incompreensível desenho táctico, praticamente só se salvou o melhor dos seus artistas: o incomparável Iniesta. Teimando em remar contra a maré do princípio ao fim, o médio do Barcelona procurou incutir inspiração e ânimo aos seus colegas. Foi dele até, aos 84', o remate mais perigoso à baliza do excelente guardião chileno, Bravo.
Mas esteve sempre desacompanhado: ninguém lhe seguiu as pisadas. No final do encontro, consumado o prematuro afastamento da selecção espanhola deste Campeonato do Mundo, Iniesta abandonou o campo de lágrimas nos olhos. Como Eusébio após a meia-final perdida contra a Inglaterra no Mundial de 1966.
Os gigantes são assim: caem de pé. Destroçados mas não vencidos, como o pescador Santiago d' O Velho e o Mar, de Hemingway. Merecem a nossa admiração também por isso.
Chile, 2 - Espanha, 0
Iniesta: fim de ciclo
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