Com este meu texto, aqui deixo a minha singela homenagem ao jogador que foi e ao que podia ter sido se a vida não lhe tem sido madrasta. Sergey Cherbakov, um jogador vibrante, com uma explosão fantástica e bom remate, elemento de um quarteto de meio-campo que integrava ainda nomes como Paulo Sousa, Krasimir Balakov e Luis Figo. Um "Dream Team" que, pasme-se, nunca foi campeão. Talvez um dia saibamos porquê...
"O Leão que veio do frio"
"Chama-se Cherbakov, é ex-soviético e ex-jogador de futebol. O seu último clube foi o Sporting, que o perdeu - ele também perdeu a sua carreira desportiva - devido a um estupido acidente de viação, motivado por uma noite em que, inconscientemente, arriscou tudo perder numa roleta russa de inspiração dionisíaca que o deixou paraplégico da cintura para baixo.
Vi pela primeira vez o Sergey jogar no velhinho Mário Duarte, em Aveiro, um campo acanhado inserido num jardim público, detalhe premonitório que anunciava o nascimento de uma bela flor do canteiro leonino.
A sua técnica (aliada à sua robustez e boa capacidade de remate) rapidamente me conquistou, mas ainda havia quem duvidasse...
Um dia, a vinte e quatro de Novembro do ano de mil novecentos e noventa e três, Cherbakov subiu ao Olimpo onde só os deuses se passeiam. Jogava-se uma partida da UEFA, em Alvalade contra o Casino Salzburg, e o nosso Cherba apostou as "fichas" certas. O seu golo foi um "all-in" que definitivamente afastou quaisquer vozes críticas: à saída do seu meio-campo, recebeu de pé esquerdo, serpenteou pela direita, aguentou o peso do primeiro adversário sobre o seu ombro, serpenteou pela esquerda, agora suportando a carga de um segundo austríaco pelas costas, a todos fugiu, imponentemente, como se tudo fizesse parte de um plano divino já pré-definido que qualquer contrariedade apenas atrasaria, e disparou um míssil daqueles provenientes da Guerra Fria, ansioso por finalmente se libertar, explosivo, que só parou nas redes. Golo!
Inesquecível! Cherba começava o caminho que muitos antecipavam o ir levar à Bola de Ouro. Tinha tudo, menos tino. A Perestroika era recente, os excessos da liberdade recém-adquirição compreensíveis e ainda havia os colegas russos do outro lado da Segunda Circular...
Dionísio e os restantes deuses, por um momento, fecharam os olhos e a tragédia aconteceu.
No final, um lamento, o de Cherba ter faltado ao encontro com a sua história, aquela que começara a desenhar nas quatro-linhas. Por ele e por todos nós."
Na madrugada de 15 de Dezembro de 1993, vindo de um jantar em homenagem a Bobby Robson, saudoso treinador que acabara de ser despedido de forma irreflectida pelo nosso mais instável presidente, Cherbakov - um extraordinário jogador russo, já aqui relembrado nesta série dos melhores golos com um soberbo golo a passe de Balakov - sofre um brutal acidente de automóvel, por desrespeitar um sinal vermelho. Tragicamente fica paralisado pondo fim a uma carreira que já na altura era uma certeza.
Recordo-me do ambiente pesadíssimo dos dias seguintes, de Carlos Queiroz, acabado de chegar a Alvalade, a tentar transmitir toda a confiança, tanto a Cherbakov como aos restantes jogadores do plantel. Foi uma semana terrível e para culminar o Sporting deslocava-se à casa do seu maior rival no fim-de-semana seguinte, o acidente foi a uma quarta-feira. Vínhamos também do famoso verão que culminou com a chegada de Paulo Sousa e Pacheco, que tinham rescindido os seus contratos com o benfica por fax. Faxe que era o nome se não estou em erro de uma marca de cerveja (dinamarquesa?) e de forma irónica se tornou o nosso patrocinador dessa época.
A ida ao estádio da luz, o antigo, não ao pré-fabricado actual, revestia-se assim trágica, num ambiente único, pesado. A equipa do Sporting estava animicamente de rastos, tinha perdido um dos seus melhores jogadores mas acima de tudo Cherbakov era, continua a ser, uma excelente pessoa, que a todos contagiava com a sua boa disposição.
O golo que aqui recordo é desse jogo. Marcado por Figo. O golo em si não é dos mais bonitos, não tem uma dificuldade extrema, trata-se de uma bela antecipação ao guarda-redes do benfica na marcação de um canto. São os festejos que me marcaram. É a expressão de raiva de Figo a gritar o diminutivo Cherba, é o rosto de todos os jogadores do Sporting, que festejam um golo na casa do seu maior rival mas que não têm ali a cabeça. Pensam apenas no seu colega de 22 anos que está sem se mexer na cama de um hospital. E sabem que assim ficará para sempre.
Apesar do trauma que foi a temporada 2012/2013, por muitos considerada a pior época de sempre do Sporting, pessoalmente, houve uma época que me deixou ainda mais marcas. Falo da temporada de 1993/1994.
Tinha 10 anos, e do meu grupo de amigos e colegas de escola, era o único que ainda não tinha visto o seu clube campeão. «O Sporting nunca chega ao Natal», era sentença que gostavam de me atirar à cara com frequência.
Até que, de repente, um senhor inglês com ar de avôzinho simpático, e que falava um português muito engraçado, pôs a "jogar à bola" aquela que, na opinião de muitos, e na minha também, foi a melhor equipa do Sporting dos últimos 20 anos: dos campeões mundiais sub-21 Nélson, Paulo Torres, Capucho, Luís Figo e Peixe, bem como o melhor marcador desse mundial Cherbakov, passando por Paulo Sousa, Cadete, Valckx, Balakov, Iordanov e Juskowiak. Que equipa!
O Sporting nessa temporada chegou ao 1.º lugar, a jogar o melhor futebol, e era uma equipa imbatível. O mito do Natal mostrava-se, manifestamente, exagerado.
Pela primeira vez na vida, deparava-me com um Sporting que vencia e convencia, e que se revelava a equipa melhor preparada para conquistar o tão desejado título que lhe fugia para mais de 10 anos.
Até que um jogo mal conseguido na Áustria, onde de uma situação de 2-0 na 1ª mão, o Sporting vê-se eliminado da taça UEFA, origina o impensável: a demissão do treinador! José Eduardo Bettencourt não o poderia ter descrito melhor: foi uma precipitação à Sporting!
Com treinador despedido, que o rival nortenho, rapidamente, trataria de aproveitar a seu favor (com as consequências que se conhecem...), e ainda a digerir uma eliminatória perdida de forma incrível, eis que somos surpreendidos com mais um acto da tragédia que se apoderara de Alvalade: um brutal acidente de viação atira Cherbakov para uma cadeira de rodas!!!
“Cherba” era um dos meus jogadores favoritos da equipa. Não só jogava muito à bola, como tinha uma forma especial de marcar os golos: saíam sempre "golaços". Era um jogador que prometia muito na equipa do Sporting.
O trágico final da sua carreira, no espaço de poucos dias em que o Sporting é eliminado das competições europeias e o treinador despedido, constituiu um duro golpe para a equipa e para o trajecto que vinha fazendo, e que não mais voltou a ser o mesmo.
Ontem assinalaram-se 20 anos desde o horrível acidente que interrompeu, de forma definitiva, a promissora carreira de Cherbakov. Perdeu-se um grande talento, um grande jogador, e um campeonato. Salvou-se a sua vida, no que é o mais importante, afinal de contas.
Mas ninguém me tira da cabeça o que teria sido o Sporting nesse campeonato, e nas épocas seguintes também, se Bobby Robson não tivesse sido despedido precipitadamente, e Cherba não tivesse tido o acidente…
Se me perguntarem qual o melhor golo que já vi, terei, como todos nós, muitas dificuldades em mencionar só nove ou dez, começo a pensar, a recordar-me de um aqui, de outro ali, e rapidamente chego a números muito mais generosos. Se me limitar ao Sporting, a dificuldade não é, naturalmente, tão grande. Há um, no entanto, que pela sua espectacularidade e pela qualidade técnica que exigiu a dois jogadores, Balakov e Cherbakov, o autor do remate, permanecerá, para sempre, intocado na minha memória. Foi num jogo com o Beira-Mar, em 8 de Maio de 1993, no Estádio José de Alvalade. Fabuloso.
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