Tem 23 anos, é adepto leonino, foi o melhor marcador e melhor jogador do campeonato angolano, chegou em 2016 ao Sporting como um promissor talento à espera de ser lapidado na nossa academia.
Jorge Jesus não tinha paciência para miúdos. Portanto Gelson Dala foi andando nas periferias. Jogou na equipa B, enquanto existiu, e ali deixou um excelente rasto: 13 golos em 17 jogos incompletos.
Só seis meses depois de chegar a Alvalade treinou pela primeira vez com a equipa sénior, mas não passou de uma falsa partida. Ainda participou na pré-temporada seguinte com os "grandes" mas no mercado de Inverno de 2017/2018 acabou emprestado ao Rio Ave. Com apenas um minuto de presença na equipa A do Sporting para o campeonato e 70 para a Taça de Portugal.
Em Vila do Conde bastaram-lhe 17 minutos em campo para se estrear a marcar na Liga nacional. E por lá permaneceu, sempre por empréstimo, durante cerca de ano e meio. No Verão de 2019, regressou à base. Mas Marcel Keizer não o quis sob o seu comando: nem um minuto lhe concedeu na pré-temporada. Novo empréstimo, desta vez para um clube turco, onde esteve até há um mês.
Regressado - novamente emprestado - ao Rio Ave, não tardou a mostrar serviço: três golos em quatro jogos já efectuados. Dois deles selando a vitória contra o Tondela, neste fim de semana, que garantiu três pontos à equipa comandada por Carlos Carvalhal. Já tinha sido fundamental para segurar o empate frente ao Famalicão.
O jornal O Jogo chama-lhe «suplente de luxo». E com razão: o jovem angolano anda a marcar um golo a cada 32 minutos. Sempre a saltar do banco com sucesso.
Velocidade, finta, recepção orientada, controlo de bola, correcta posição do tronco na altura do remate: todos estes atributos o recomendam para um lugar ao sol no plantel leonino.
É caso, portanto, para perguntar: quando conseguirá Gelson Dala - já com 27 internacionalizações por Angola - uma verdadeira oportunidade no Sporting três anos e meio depois de ter chegado a Portugal?
Quando eu tinha quinze anos, a minha família, por razões da vida profissional do meu pai, foi viver para Luanda. Para os meus três irmãos e para mim, foi uma época extraordinária. Oriundos de Lisboa, a experiência de um modelo de organização social que, em muitos aspectos, nos pareceu excitantemente novo teve um impacto inapagável nas nossas vidas. Em virtude de ter escolhido um curso universitário que então não existia na Universidade de Luanda, eu acabei por lá ficar apenas, se exceptuarmos alguns períodos de férias, pouco mais de dois anos, os do 6º e 7º anos do ensino secundário, equivalentes, hoje, na medida em que eram os últimos, aos 11º e 12º. Tal não impediu, no entanto, que a cidade me tivesse marcado para sempre. Quando digo a cidade, devo referir-me, sobretudo, embora sem esquecer muitos outros aspectos marcantes da vida naquela comunidade, ao extraordinário liceu que tive a sorte e a honra de frequentar, o Liceu Nacional Salvador Correia.
Era uma escola magnífica. Os meus irmãos e eu, habituados que estávamos a um excelente e exigentíssimo liceu, embora muito elitista, o Pedro Nunes, em Lisboa, adaptámo-nos, de modo fulminante, a um padrão de funcionamento e a valores muito diferentes daqueles que constituiam, no âmbito do ensino, os nossos principais pontos de referência. Muito mais liberdade, muito mais abertura de espírito, o exercício de uma autoridade muito menos constrangedora e um clima de incomparavelmente mais compreensão e tolerância nas relações entre professores, pessoal administrativo e alunos fizeram com que rapidamente nos tivéssemos sentido em casa, como se aquela tivesse sido, desde sempre, a nossa escola, como se a ela estivéssemos unidos por alguma ligação desconhecida. E vivíamos mesmo o liceu, este não era apenas um edifício onde fôssemos ter as nossas aulas ou cumprir, enfastiados, enfadonhas tarefas rotineiras. Para mim e para muitos amigos e colegas, aquela soberba casa amarela era, de facto, uma segunda casa. Quantas vezes, mesmo em férias ou, por qualquer motivo, não tendo aulas, nos encontrávamos lá com os amigos e colegas, para conversar, para puro e simples convívio ou para praticar desporto, no meu caso, normalmente, futebol ou basquetebol, dos desportos mais praticados, naquele tempo, pela juventude luandense. O Salvador Correia era fantástico, era o centro da vida de muitos de nós, veja-se, nos dias de hoje, o movimento de autêntica irmandade que foi criado por muitos dos antigos alunos em volta das recordações do seu velho liceu. Tenho sempre uma enorme satisfação em dizê-lo, as minhas amigas e amigos mais antigos, quase irmãs e irmãos, se isso é possível, datam dos nossos quinze anos, dos tempos gloriosos do 6º e 7º no Salvador Correia.
O desporto desempenhava um papel importantíssimo na juventude de Luanda, muito mais do que aquilo a que eu estava habituado em Lisboa. Não era, pois, de admirar que as paixões clubistas aí se manifestassem com, pelo menos, tanta intensidade como na então metrópole. O Sporting, o Benfica, o Porto, o Belenenses, o Braga e mais uns tantos tinham em Luanda e noutras cidades de Angola as suas filiais, acompanhadas pelos respectivos prosélitos como se das casas-mãe se tratasse. Eu já quase não fazia a distinção e lembro-me bem de seguir a equipa de hóquei em patins do Sporting de Luanda, naquele tempo uma das melhores, com o mesmo fervor com que mais tarde acompanhei, já em Lisboa, o Sporting de Ramalhete, Rendeiro, Sobrinho, Chana e Livramento. Neste domínio, o liceu era, também, palco de muito grandes e amigáveis discussões. Recordo-me, em especial, dos debates arrebatados, às segundas-feiras, com um adepto benfiquista e um portista, sobre todas as incidências, reais ou ingenuamente imaginadas, da jornada de Domingo do campeonato nacional de futebol. Os meus opositores, nessa discussões semanais bem humoradas, cujas fontes de informação se limitavam, na falta de televisão, à incipiência dos jornais e relatos radiofónicos, eram o professor Ramalho, de ginástica, entusiasta do Porto, que aceitava, com boa disposição e prazenteira benevolência, colaborar naquele ritual juvenil, e um colega de quem só me lembro chamar-se Velhinho, representante do Benfica na tertúlia. Essas discussões, inflamadas mas polidas, eram abundantemente fundamentadas com informação detalhada e, a nosso ver, rigorosíssima, recolhida com toda a seriedade naqueles órgãos de comunicação social - eu não lia a Bola, eu estudava-a, com mais afinco, de certeza, do que a maior parte das disciplinas curriculares - e tinham sempre lugar, durante o maior intervalo da manhã, debaixo do majestoso pórtico do liceu, perante uma assistência de, pelo menos, uns vinte e tal ou trinta colegas, ou, às vezes, mesmo mais, que se divertiam com tudo aquilo tanto como os próprios participantes residentes nesse Dia Seguinte avant la lettre.
Na cantina do liceu pontificava um contínuo, o Videira, de seu verdadeiro nome João Augusto, personagem extremamente popular, que suportava com estoicismo e paciência, muita mas, reconheçamo-lo, não infinita, as arremetidas constantes de massas desordenadas de alunos sequiosos e esfomeados, ansiosos pela sua vez de chegar, nem sempre pelo preço estabelecido, diga-se de passagem, às proverbiais coca-colas e bolas de Berlim. Era um homem muito modesto, simples, jovial e que mantinha com todos os mininos uma excelente relação, qualidades que lhe valeram transformar-se num símbolo do Salvador Correia. Este estatuto, com o decorrer dos anos e com o crescimento de naturais sentimentos de nostalgia por parte de muitos dos antigos alunos, veio a sedimentar-se, a ponto de, hoje, o Videira me parecer constituir, junto de alguns círculos, uma figura quase venerada.
Perto de meia-dúzia de anos atrás, recebi um telefonema inesperado de um colega desses tempos, o João Moedas, que eu não via e com quem já não falava há cerca de três décadas, a perguntar-me, lembrando-se de algumas ligações, minhas e da minha família, ao Sporting, se não seria possível interceder junto de alguém que, no clube, pudesse organizar, em benefício do Videira, uma visita ao estádio. É verdade, o Videira nunca tinha vindo a Portugal, nunca tinha saído de Angola, mas, nesse ano, a comissão responsável pela organização do encontro anual de antigos alunos do liceu tinha decidido promover a sua presença neste evento. E, auscultado o bom do Videira sobre os locais do nosso país que ele gostaria especialmente de conhecer, qual foi a resposta? Adivinharam, pelo menos quanto a um deles, o Estádio José de Alvalade. Os outros foram Fátima e Guimarães, o berço da nacionalidade, nas suas palavras vibrantes, durante o almoço depois realizado e em que ocupou o lugar de honra.
Prontifiquei-me imediatamente a procurar satisfazer o desejo do Videira e, uma vez que um dos meus irmãos pertencia na altura aos órgãos sociais do clube, foi fácil estabelecer os contactos necessários para a organização da visita. No dia aprazado, lá apareceu ele, acompanhado pelo colega de que falei e por um outro antigo aluno do liceu, conhecido como Maravilhas. Foi muito bem recebido, além do meu irmão e de mim próprio, por Margarida Caldeira da Silva, que, à época, era responsável pela área das relações públicas e lhe ofereceu, em nome do Sporting, uma série de presentes, entre eles a camisola verde e branca, que, pouco depois, vestiu e exibiu orgulhosamente até ao momento da despedida. Andou pelos balneários, onde fez questão de ser fotografado em frente ao cacifo do Pedro Barbosa, pelo relvado, quis ser também fotografado ao pé de uma das balizas, foi ao camarote da direcção, a mais alguns sítios de que já não me lembro e, sempre emocionado, acabou, a convite do meu irmão, por almoçar connosco e com os antigos alunos que o acompanhavam no restaurante panorâmico do estádio. Foi um momento enternecedor e divertidíssimo. Afável e loquaz, generoso e fraterno nas suas memórias e nos seus juízos sobre Portugal e os portugueses, sempre com a camisola às riscas verdes e brancas vestida, contou, numa linguagem sugestiva e rica, insuspeitada num homem tão modesto e simples, histórias do liceu e de Luanda de que ou já não nos lembrávamos ou, na maior parte, nem sequer conhecíamos. O Sporting e a sua história estiveram sempre presentes e, à medida que íamos conversando sobre o clube, exaltando as suas glórias, o Videira olhava em volta, abanava a cabeça como se não acreditasse na experiência que estava a viver e dizia profundamente comovido: Isto é o céu, isto é o céu!
E ele era sincero, via-se bem o que estava a sentir. Independentemente dos sentimentos de afecto decorrentes da ligação ao Liceu Salvador Correia, também eu senti orgulho, enquanto sportinguista, por ver a emoção de um homem de perto de 70 anos que, nunca tendo vindo antes a Portugal, vivia tão intensamente o clube. Desportivamente falando, tal como para tantos de nós, esta, embora vivida de tão longe, também era e é a sua fé.
O Videira acabou por ir a Fátima e, na altura, não foi possível, não sei porquê, levá-lo a Guimarães. Mas esta não foi a sua última presença em Portugal. Três ou quatro anos depois, por ocasião do lançamento de um livro dedicado à história do Liceu Nacional Salvador Correia, de título Viva a Malta do Liceu, o Videira foi, mais uma vez, convidado a deslocar-se ao nosso país e pôde, finalmente, visitar a cidade que tanto ambicionara conhecer.
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