Sporting: o meu «Bolero de Ravel»
Conheço uma moça que, em matéria de football, é de uma ingenuidade enciclopédica. Não sabe o que é um «chute» e ignora se a bola é quadrada ou redonda. Outro dia, ela vai à Tijuca. E, de repente, vê, mais adiante, uma coisa grande, uma coisa imensa. No seu pânico, aponta e pergunta: «O que é aquilo? Tiveram que explicar que «aquilo» era o Maracanã, o maior estádio do mundo etc., etc.
Posteriormente, tenho sabido de coisas singulares a respeito da minha conhecida. Por exemplo: não lhe falem em «tabuleiro da Baiana», porque ela cairá na mais atra e torva perplexidade. Em suma: uma flor de moça. Pois bem. Um dia desses, ocorre na vida de minha amiga (se assim posso chamá-la) uma experiência curiosa: ela encontra em cima da mesa um exemplar do Jornal dos Sports. Balbucia, com a sua inocência maravilhada: «Cor-de-rosa!»
Graças à cor, e só à cor, dispôs-se à leitura. E acaba descobrindo, num canto da página, esta coluna. Viu a minha assinatura e seu interesse aumentou. É doce ler um conhecido! Foi até o fim de minha crônica e, como falava em football, não entendeu patavina. Dois ou três dias depois, ela encontra em cima da mesma mesa o mesmo Jornal dos Sports. Nova leitura. Mais tarde ela bate o telefone para mim. Pergunta: «Você só escreve sobre o Fluminense?»
Eis o que acontecera: ela só conhecia, deste colunista, duas crônicas. E, por coincidência fatal, em ambas o tema principal, ou melhor o tema único era o Tricolor. E a moça não entendia que pudesse existir jornalista de um assunto só. Com o maior descaro, e não sem doçura, respondi-lhe: «Eu só escrevo sobre o Fluminense!»
Amigos, o que a amiga não aceita, e ninguém aceita, é esta verdade eterna: cada escritor, cada cronista, cada poeta tem o seu «Bolero de Ravel», ou seja: o assunto obsessivo e triturante, em torno do qual ele gravita, obtusa e teimosamente. Ai daquele que é incapaz de uma fixação! Coitados dos que pulam de um assunto a outro, com uma frivolidade irresponsável. «É preciso variar», dizem. Mentira. É preciso, inversamente, não variar. Nada é mais estúpido e vazio do que a variedade. Assim, no jornalismo como na literatura, na literatura como no amor.
No amor, o grande sujeito é o camarada de uma só mulher. Ele agarra a sua e não a larga mais. Repito: o verdadeiro Don Juan é o sedutor de uma conquista única, para sempre. No football, é preciso gostar, obviamente, do mesmo clube. E assim por diante. Nada mais justo, pois, do que o jornalista especializado que também só escreve sobre um único clube, eternamente único. Essa fidelidade exasperada é de uma beleza completa.
Jornal dos Sports, 22/9/1961»
In. .RODRIGUES, Nelson- Brasil em campo : crónicas. 1ª ed. Lisboa : Tinta da China, 2018. pp. 187-188.
Através da leitura do texto «A censura nas escolas do Brasil», do colega de blog “jpt”, podemos chegar a esta «Relação dos livros a serem recolhidos», uma directiva da Secretaria de Estado da Educação de um estado brasileiro com títulos «para serem recolhidos das escolas por conterem o que foi definido como "conteúdos inadequados" a crianças e adolescente.». Nela consta o nome deste autor: Nélson Rodrigues, com outros títulos («Beijo no asfalto» e «A vida como ela é».
Não vou fazer qualquer consideração sobre isto – este não é o espaço. Deixo somente esta crónica, deliciosa.