"Rola, rola sem fim; não agarra nada..."
... assim tem sido o nosso futebol.
Talvez por Vila do Conde ser terra de pescadores, de onde muitos homens saíram para a «Faina Maior», a pesca ao bacalhau, este texto, de Bernardo Santareno (*), é a minha melhor análise sobre o último jogo do Sporting frente ao Rio Ave.
Desejamos que quinta-feira seja diferente.
«- How do you do, doctor?
Estendeu-me a mão molhada de cerveja, que eu apertei. Foi em Torrevieja num “bar”.
Não o esqueci: aquela cara congestionada pelo álcool e no entanto de traços delicados, a voz rouquenha e escarninha, o corpo onde a embriaguez não conseguia destruir uma elegância que, sendo natural, era também cuidada…
Informei-me: pertencia à tripulação do “David Melgueiro” e era um simples “verde” quer dizer principiante (os outros “maduros” e “homens de ofício”). Achei estranho.
Era, na verdade, diferente dos demais: Mais evoluído, família de classe superior? Até pela maneira de vestir…
Com certeza, no entanto, para mim, mais antipático: Aquela troça mal disfarçada, com que me tinha atirado o “how do you do?”…
Enfim, estava embriagado. E continuou a beber no navio.
Choviam as queixas: Indisciplinado, raro cumpria a sua parcela no trabalho. Mas os outros gostavam daquele “verde” e lá o iam protegendo, escondendo-o dos oficiais supervisores.
Vieram falar-me…
Era açoriano, não tinha pai nem mãe, nem ninguém.
Chegara a estudar.
- “Julga que é mentira, doutor? Pergunte lá em cima, ao piloto: cursei com ele os primeiros anos do liceu!...”
Mas desistira. Aliás, até hoje, não fizera outra coisa senão começar carreiras… Depois veio a vida militar. E agora para aqui estava…
- Agora sou um reles “verde” senhor doutor…
Ficara horas a contemplar o mar, debruçado na amurada do arrastão.
- Sai daí, vai trabalhar, deixa lá isso. Olha que o capitão castiga-te…”
- Não castiga. Tenho ali o mar pronto a receber-me!...”
E no seu olhar azul-sombrio, brilhava qualquer coisa de feroz, brasa onde se queimava um grito desesperado…
Dormia sempre com uma faca, entre a camisa e o peito…
- “Deixa cá ver a faca: Pra que precisas tu dela, aí no teu beliche?”
- “Não dou. É a minha noiva. E qualquer dia caso-me com ela…”
Procurei falar com o rapaz. Agreste e chocarreiro a princípio, foi depois cedendo… à medida que, em mim, ia aumentando a simpatia por aquele “verde”, bravio e orgulhoso, que procurava no álcool e nos fumos da morte, alívio para a chaga da derrota, rasgada em suas entranhas…
- “A minha vida, doutor, é como o mar: Rola, rola sem fim; não agarra nada, não para nunca!...”»
In: SANTARENO, Bernardo - Nos mares do fim do mundo: doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses por bancos da Terra Nova e da Gronelândia. [1ª ed]. Lisboa : Ática, 1959. pp. 23-25