Rescaldo neste fim de ciclo.
Já hoje de manhã o dissera, depois do jogo com o Marítimo pode-se fazer o rescaldo do ano. Dizer isso é afirmar sem rebuço que a Taça é relativamente insignificante. É a "festa do futebol", mas é mais uma sobrevivência de outros tempos, qual visita do circo na aldeia, quando os pequenos lugares tinham assim a oportunidade (sorteada) de receber os ídolos. Honestamente, em tempos de "live streaming", isso já é muito pouco relevante (e muito menos a taça da Liga). Principalmente para os "grandes clubes", os clubes nacionais, e seus adeptos. Estamos na via da globalização futebolística, há anos que se teme a enorme fractura que será a Liga Europeia, o fundamental é jogar o acesso à actual Liga dos Campeões, a qual, com toda a sua crescente disparidade, ainda é relativamente democrática. Relativamente, sublinho. Pois estar presente nela é não cair na ... III divisão europeia. Este é o contexto do rescaldo, do hoje e do ano.
0. Antes de avançar uma nota sobre o quadro mental dos opinadores: leio aqui nos comentários que a equipa perdeu no Funchal e, nisso, o acesso à Liga dos Campeões porque os jogadores quiseram prejudicar o presidente. Comentar num blog, e escrever sobre futebol, não é muito importante, de facto é apenas um placebo que nos ajuda a julgarmo-nos vivos. Mas, ainda assim, convém ter algum tino quando se bota, o qual inexiste quando se pensa que um tipo como Piccini, mais ou menos suplente num médio clube espanhol que vem para o Sporting, onde se valoriza a ponto de ser anunciado o interesse dos grandes do seu país, de repente joga daquela péssima maneira para chatear o BdC; ou que Mathieu, saído sem particular glória do Barcelona para a quase reforma, vai perder a hipótese de prosseguir na liga celebrizada; ou Battaglia, que jogava no Chaves emprestado pelo Braga e que um ano depois já se fala como possível na selecção argentina?, ou Fábio, proscrito em Madrid, a querer ter que para lá voltar sem qualquer sucesso de relevo, ainda para mais no clube de que é adepto?, ou Acuña, no seu primeiro ano de Europa, a deitar fora um apuramento para a Liga celebrizadora, devido a uma birra?; e etc. É certo que o Sporting jogou muito mal no Funchal, mas atribuir isso a uma má-vontade dos jogadores é estapafúrdio. E as pessoas deviam ter vergonha de opinarem em público de forma estapafúrdia (e é também por isso que tanto me desagrada este velho tique blogal do comentário anónimo. Pois quando as pessoas assinam dizem menos nulidades).
1. Este jogo foi o óbvio fim de ciclo de Jorge Jesus. Ele foi contratado por três anos - depois houve um alargamento do prazo contratual. O insucesso é visível. Reconfigurou o plantel à sua medida. E o Sporting tem um futebol limitado, nem atractivo nem vencedor. E deixou de apostar na formação, que era não só o ideário do clube como a perspectiva de salvaguarda económico-financeira. É significante ver que no último derbi com o Benfica quando se gizaram as substituições este lançou três opções que anunciavam rupturas (Salvio, Cervi, Jonas), incomparáveis com o tipo de capital humano que o Sporting tinha no banco. Isto num ano de grandes constrangimentos económicos na Luz e de evidentes erros na construção do plantel. O ciclo de Jesus acabou - eu escrevi-o num texto longo de 4 de Março, que parece tão longínquo tão demenciais foram os tempos que se seguiram. Até porque a relação com os adeptos está gasta, ele já não produzirá a crença em vitórias como o fez nos anos anteriores. Como eu dizia no início de Março, nem uma improvável vitória na Liga Europa comprovaria que o seu modelo (de jogo, de gestão de plantel) se adequa ao necessário para o futuro do clube. E depois há as trapalhadas em campo - hoje foram demasiadas - que maculam o necessário apreço dos adeptos pelo seu treinador.
Ou seja, Jesus veio por três anos. Razões várias (comunicacionais, congregadoras) fizeram alargar o contrato. Mas elas pereceram. Está no tempo de partir. Ou será qual Wenger no Arsenal. Respeitado, porventura. Mas sofrido.
2. Os últimos dois meses (após o tal meu texto que refiro, Jorge Jesus para o futuro?) foram demenciais, devastando a relação do presidente com os jogadores e, decerto, poluindo a tida com o treinador. E alquebrando a quase unanimidade que BdC tinha na comunidade Sporting. Não vou chover no molhado, todos sabemos os inúmeros episódios. Mas, honestamente, este final é catastrófico, e mesmos os mais arreigados defensores do presidente têm que se interrogar. Na sequência destes eventos não é normal que o Senhor seu pai, habitualmente retirado da praça pública, tenha vindo criticar o treinador. Como também não é uma entrevista substantiva, neste contexto ainda para mais, na véspera do jogo decisivo.
Mas o fundamental é a ausência do presidente do jogo no Funchal. Note-se, se BdC fosse um presidente "presidencial", cultor da "gravitas", de uma pose eclética e distanciada, seria aceitável, ainda que algo excêntrico nas décadas que correm, que trocasse o jogo de futebol sénior fundamental para a próxima época por uma final de uma qualquer "modalidade", hóquei em campo, em patins, andebol de 7 ou de 11, natação sincronizada, dressage ...
Mas o futebol masculino sénior é o trampolim do clube, em torno do qual giram as finanças e as economias, e é o grande motor das paixões neste país futebolizado. E BdC foi desde o princípio disso participante, o presidente-adepto que ia para o banco. Incomparecer no jogo decisivo - não sendo por recomendação médica, dado o síndrome vertiginoso que o acometeu há algum tempo e que o impediu de voar - não provocou pior futebol na equipa. Mas mostra a ruptura do presidente com essa fundamental equipa do clube num momento decisivo. Não há ruptura, dirão alguns. Mas a incomparência mostra-a ou, pelo menos, aparenta-a. É um desastre, em termos presidenciais. Mais um, nestes últimos péssimos meses. E, tal como acontece com JJ, também BdC não conseguirá criar o capital de crença que conseguiu em anos transactos. Por mais que "anime" as claques organizadas, que agite através das "modalidades". Agora já não chegará. É uma estratégia, mas será insuficiente. Por mais que custe a quem tanto creu, o ciclo de BdC também caminha, voa até, para o fim.
3. Plantel. O postal vai longo, não me alongarei. O plantel não é curto, é estreito. Escasseiam alternativas, inexistem agentes de rupturas. Seria precioso, será preciso, contratar para poder diversificar o jogo. E teremos a partida de alguns dos melhores jogadores. Com pecadilhos? Com toda a certeza. Mas que têm sido bons profissionais - não há notícias de problemas disciplinares no plantel, e JJ nunca foi conhecido por ser um deixa-andar. Como tal saídas que deveremos lamentar, pois enfraquecerão o plantel, e o seu capital simbólico, a tal "mística". Ora as últimas notícias mostram a realidade, um clube esmagado por constrangimentos económicos - tal como os rivais, mas estes, pelo menos, com o olho nas dezenas de milhões da liga campeã. E com o molde de JJ, com o seu particular filtro contratador, muito duvido que neste contexto se possa contratar a contento do treinador e de molde a "rejuvenescer" o plantel, tornando-o mais polivalente.
4. Enfim, para o ano vai ser muito difícil. Tudo parece pior do que para este ano se antevia. E com duas personalidades como JJ e BdC na frente do futebol, não há muito espaço para auto-críticas e mudanças de rumo. O descalabro anuncia-se. O que nos sobra é que no futebol (quase) nunca é como se previra.