O "penálti" que nunca existiu
O Correio da Manhã escreve hoje quatro vezes - repito: quatro vezes - sem o menor sobressalto de dúvida que o árbitro Carlos Xistra perdoou ontem uma grande penalidade ao Sporting.
Vem no texto em que relata o jogo: "Num dos poucos ataques do Rio Ave, João Pereira derrubou Vilas Boas na área. Carlos Xistra mandou seguir. Enganou-se. Era penálti."
Vem num destaque inserido neste mesmo texto: "Carlos Xistra errou ao não assinalar penálti contra o Sporting."
Vem numa caixa, ilustrada com um apito, na mesmíssima página: "Carlos Xistra errou ao não assinalar um penálti cometido por João Pereira por André Vilas Boas."
Vem noutra caixa, ilustrada com um lance do jogo, na página seguinte: "Penálti por assinalar a favor do Rio Ave por derrube de João Pereira a André Vilas Boas, na área."
Muito mais do que uma opinião multiplicada por quatro: é um grito amplificado com megafone.
Diz-se que uma mentira muitas vezes repetida se arrisca a tornar verdade. Nada melhor, portanto, do que tirar a limpo as eventuais ilusões de óptica que possam ter perturbado o autor deste implacável tiro-ao-Xistra enquanto assistia ao jogo.
Pego noutro diário do mesmo grupo editorial, o Record, e o que leio em prosa assinada pelo director do jornal, António Magalhães?
Isto:
"André Vilas Boas cai na área do Sporting depois de uma disputa com João Pereira e reclama-se penálti. Os dois jogadores chocam sem existir qualquer infracção."
Primeiro desmentido das "certezas" do Correio da Manhã.
Sigo depois para A Bola. Análise dos casos de arbitragem por uma das penas mais prestigiadas do diário da Travessa da Queimada: a do jornalista Rogério Azevedo.
O que escreve ele?
"Lance na área do Sporting, entre João Pereira e André Vilas Boas. O médio do Rio Ave acaba por cair, mas sem qualquer falta por parte do defesa do Sporting. Boa decisão por parte de Carlos Xistra."
Segundo desmentido.
Consulto enfim o incontornável tribunal da arbitragem do matutino O Jogo. Lá surgem as opiniões do trio habitual: Jorge Coroado, Pedro Henriques e José Leirós.
Veredicto unânime: nada de penálti.
Escreve Coroado: "Sem irregularidade. Contacto normal na tentativa de chegar à bola, não havendo motivo para intervenção do árbitro."
Escreve Henriques: "Lance legal, sem motivo para penálti. Ambos usaram o corpo na disputa de bola e o choque e a queda foram inevitáveis e normais."
Escreve Leirós: "Com convicção e determinação, Xistra viu bem: não houve carga nem empurrão, apenas disputa leal e vigorosa para recuperar a bola."
Terceiro, quarto e quinto desmentidos.
Fico definitivamente esclarecido.
Mas, no fim de tudo, assalta-me uma dúvida: o solitário opinador que anunciou ao País a existência de um penálti que só ele viu terá mesmo assistido ao jogo?