O ídolo
Agora que Bruno Fernandes se foi embora, faço esta pergunta:
Qual o jogador do nosso plantel que se aproxima desta descrição de Eduardo Galeano?
«O ÍDOLO
E um belo dia a deusa do vento beija o pé do homem, o pé maltratado, desprezado, e desse beijo nasce o ídolo do futebol. Nasce em berço de palha e em barraca de lata e vem ao mundo abraçado a uma bola.
Desde que aprende a andar, sabe jogar. Nos seus verdes anos alegra os baldios, farta-se de jogar nos descampados dos subúrbios até que a noite cai e já não vê a bola, e em jovem voa e faz voar nos estádios. As suas artes malabares congregam multidões, domingos após domingo, de vitória em vitória, de ovação em ovação.
A bola segue-o, reconhece-o, exige-o. No peito do seu pé, ela descansa e baloiça-se. Ele chuta-a e fá-la falar, e nesse diálogo conversam milhões de mundos. Os zés-ninguém, os condenados a serem zés-ninguém para sempre, podem sentir-se alguém durante um pouco, por obra e graça desses passes devolvidos ao toque, desses fintas que desenham zês no relvado, desses golaços de calcanhar ou de bicicleta: quando ele joga, a equipa tem doze jogadores.
- Doze! Tem quinze! Vinte!
A bola ri-se, radiante, no ar. Ele fá-la descer, consegue adormece-la, corteja-a, fá-la dançar, e vendo essas coisas nunca vistas os seus adoradores sentem pena dos seus netos ainda não nascidos, que nunca os poderão ver.
Mas o ídolo só é ídolo por algum tempo, humana eternidade, coisa de nada; e quando a sorte madrasta atinge esse pé de ouro, a estrela conclui a sua viagem do fulgor ao apagão. Esse corpo fica com mais remendos do que um fato de palhaço, o acrobata passa a ser paralítico, o artista uma besta:
- Com pitões não!
A fonte da felicidade pública transforma-se no para-raios do rancor público:
- Múmia!
Às vezes o ídolo não cai inteiro. E às vezes, quando se quebra, as pessoas devoram os pedaços.»
In.: GALEANO, Eduardo - Futebol ao sol e à sombra. 1ª ed. Lisboa : Antígona, 2019. pp. 14-15