O amor não é um labor
Hoje publica-se o nº 4 da revista "Mordaz", dedicado ao tema "Trabalho". Aqui partilho o meu texto que lá vem incluído, esperando não agredir a vossa paciência sportinguista, forma algo atrevida de utilizar este blog para divulgar a revista (gratuita), criada durante este período confinado. Apesar desta não ser desportiva, nem escrita apenas por sportinguistas:
O Amor não é um Labor
São Martinho do Porto, verão frio como sempre, é sábado, eu no quarto, já não no tempo de Verne ou Salgari pois agora de “Vampiro”s, ouço o transístor vermelho minha companhia e, na tarde desportiva, Orlando Dias Agudo promete grande notícia para dali a uma hora, e logo caio no alvoroço, será o rumor verdade?..., e depois vem o júbilo!, sim, o Senhor João Rocha resgatava Rui Jordão, salvaguardando-o em Alvalade, e eu adoro-o, ao Rui Manuel Trindade Jordão, paixão ganha, traição minha, no 3-5 d’antes, no jogo em que Jázalde, Hector Casimiro Yazalde, dito Chirola, casado com Carmizé, marcou cabeceando junto à relva, mas ali Jordão, então feiticeiro do Benfica, enfeitiçara(-me), ainda que em magnífico ano de campeões, esses que sei de cor, Damas, Manaca, Alhinho, Bastos, Carlos Pereira, Vagner, Nelson, Baltazar, Marinho, o tal imenso Jázalde, Dinis, os quais bateram o Porto no 16 de Março, jogo transmitido em diferido ao fim da tarde, coisa tão rara, devido a não sei o que se passou nas Caldas, mas que não pude ver, maldição, pois a minha mana parira e obrigaram-me a visitá-la, como não vi ali o tal seguinte 3-5, esse de quando o estádio todo, sem clubismos, se levantou a saudar Marcelo, o “tio” deste, mas, logo depois, também ao Chirola e ao Jordão, e não os vi porque o meu pai nunca foi de bola, nem lá ia, nem os meus irmãos, queques da vela e do “rugby”, e sozinho me ganhei sportinguista na 1ª classe, ano de opções em ecrã preto-e-branco, no Barça 4-Valência 3 e assim até ao Futre, no Arsenal 3 (2 golos do Charlie George, cabelo à Beatles)-Leeds 2, lá nas taças deles e, na nossa, num 4-1 ao Benfica, com o King, como o conheci décadas depois, a marcar, e nós (sim, naquele exacto durante fiquei “nós”) com Damas na baliza. Vítor Damas, eu quero ser assim homem como ele, e ainda disso não desisti, no campo mas mais até cá fora, como se barbeia, com Palmolive, e aquela voz, cava, e com ele aprenderei, e não na tropa, a fazer o nó da gravata, naquele algo descaída,
e por tudo isso sigo Agostinho na França, meu pai dando-me dinheiro para comprar “A Bola” para lhe ler as aventuras, ele gigante batendo-se com Ocaña, Merckx, Thevenet, até trepando mais que Van Impe, Tourmalets acima, “Tinô!”, “Tinô!”, por lá o cantavam, ao nosso herói, poderia lá eu então perceber o quanto o era de facto, até, bem depois, se morrer numa coisa menor, e nós a esperá-lo, em esquife, na volta ao José de Alvalade, devastado como nunca vi, e seguindo para o túmulo em estrada recoberta pelo nosso povo, num silêncio pesado como nunca ouvi, ledes a minha ainda dor disto?,
por isso segunda-feira me baldei às aulas, subi ao aeroporto, junto ao Luís, azarado pois corcunda, nem corria nem nunca correria, merda de vida estará a ter se ainda a tem, a acolher os campeões Aniceto Simões, o barbudo, Carlos Cabral, Mamede e Lopes, o gigante, por quem Mariano Haro, o às espanhol, esperara quando ele caíra na lama, caval(h)eiro como já não havia, ao invés do bárbaro Lá-ce Viren, o maldito, o dopado que tanta dor causou até ao nosso Lopes daquela maratona olímpica, majestoso, correndo pujante, erecto, nada como os desengonçados que vieram a mandar, “vai Lopes!”, “vai, campeão!”, na angústia até às lágrimas mesmo, mas também venerando Mamede, intuindo-o Príamo d’agora, semi-divino nas suas dúvidas e fraquezas, assim vero herói, pois falho como todos, como eu, que nem sequer cheguei ao topo …,
esse topo de Livramento, o mago, eu miúdo no pavilhão, esfuziante com Ramalhete, Rendeiro, Sobrinho, Xana e … Livramento, e o triunfo contra os inimigos espanhóis, então únicos, e depois obrigado a crescer, e nesse fervor descer às casas de bilhar, tão saudosas, SG Filtro e bejecas adornando-me da linhagem do Theriaga, que é nosso, e nessa névoa amando Big Mal, o do maior exemplo, pois champanhe, mulheres, charutos, jogo e … vitórias, rock n’roll para os nossos ouvidos, e nisto a vida escorreu, lesta, eu desapercebido disso, e o milénio acabou, fez-me largo trintão e só lembro na tv lá em Maputo de um autocarro estrada afora noite adentro, na via do Salgueiros a Alvalade, e a minha mulher, até surpresa, “andaste dias com um sorriso parvo” …
e há pouco, já cá, em casa do mano Bill num jogo qualquer, Benfica, Europa, sei lá, e mesmo no fim o tal golo de sempre, a derrota, claro, e após o belo manjar que ali é sempre, indo para o carro, a minha filha já adolescente resmunga “é sempre a mesma coisa, perdemos no fim”, e respondo-lhe “não é importante”, e ela devolve-me “ mas é uma chatice”. Sorrio e insisto “não é importante” e avante … Não lho disse, digo-lhe agora, se ela me ler, que não é importante pois não tem causa, nem razão, nem ganhos. É (como o) amor. Mas sem divórcio. Um arquétipo. E não um labor.