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És a nossa Fé!

Memórias do Tottenham (parte 2)

Complemento ao texto de Pedro Boucherie Mendes

 

«Quinhentas pessoas, não mais do que isso. Uma das páginas mais sublimes do Sporting de Malcolm Allison é presenciada por escassas cinco centenas de pessoas. Chove com intensidade. Lisboa debate-se com uma tempestade de Inverno com rajadas superiores a 120 km/h e forte concentração de pluviosidade. Proíbe-se a circulação de trânsito na Marginal entre Lisboa e Cascais. Um pesqueiro francês, incapaz de controlar a força do vento, encalha no Bugio. Parte da cidade fica isolada durante algumas horas, com os acessos rodoviários cortados pela chuva e pela lama. Em contrapartida, no Estádio José Alvalade, vinte e dois jogadores e um punhado de espectadores indomáveis, aconchegados como pinguins na Antárctida, produzem um espectáculo sublime, uma espécie de récita para um clube privado.

O campeonato inglês parara por culpa da intempérie. Uma das mais graves tempestades do século imobilizara por completo a Grã-Bretanha, provocando níveis recorde de cheias e prejuízos avultados.

O futebol sofre também. O manager do Tottenham, Keith Burkinshaw [*], velho amigo de Malcolm Allison, desafia o treinador do Sporting para um jogo de preparação em Lisboa no dia 29 de Dezembro, de forma a que os seus rapazes mantenham algum tipo de competição. Por ironia, escolhe o dia da tempestade em Lisboa. Talvez ainda magoado pela eliminação face ao Neuchâtel, Allison aceita o repto de medir forças com uma das mais fortes equipas da Europa.

O Tottenham traz a Lisboa todos os pesos-pesados. Chegam os argentinos Ricky Villas e Osvaldo Ardilles, estrelas da equipa que vencera o Campeonato do Mundo de 1978. No auge da sua popularidade, Ardilles fora chamado até a participar no elenco do filme Fuga para a Vitória com Sylvester Stallone e Pelé. Ao aterrarem em Lisboa, nos últimos dias de 1981, os dois craques argentinos não adivinham que a sua vida mudará de todo quatro meses mais tarde: a Marinha do seu país invadirá as ilhas Malvinas, um protectorado britânico, e a Grã-Bretanha retaliará, iniciando um breve confronto militar que causará a morte de mais de novecentos argentinos. Assobiados em todos os estádios do país, Ardilles e Villa em breve partirão de White Heart Lane.

Na comitiva do Tottenham, chega também Ray Clemence, o guarda-redes que acaba de perder a titularidade da selecção inglesa para Peter Shilton e procura no Tottenham a fama perdida em Liverpool. Chega Glen Hoddle, de físico imponente e habilidade invulgar nos jogadores das ilhas. Arribam ainda os irlandeses Chris Hughton e Tony Galvin e o escocês Steve Archibald, figuras de proa de um conjunto que terminará a Liga Inglesa em quarto lugar, vencendo a Taça de Inglaterra e atingindo as meias-finais da Taça dos Vencedores de Taças.

«Foi um jogo sublime», lembra Nogueira. «Precisávamos daquilo, do desafio com uma equipa grande depois da eliminação com os suíços. Eu adorava jogar à chuva e acho que nunca tirei tanto prazer da minha profissão como nesse jogo. Estavam o Ardilles e o Villa do outro lado. O campo estava encharcado, mas jogámos como se fosse um pano de bilhar. Foi um jogo incrível e lembro-me de não querer que aquilo terminasse. De estar a jogar por prazer, entre amigos.»

Allison coloca em campo o seu onze de gala - estamos longe ainda da era em que os treinadores falarão em poupanças, em tempos de recuperação ou em desgaste competitivo. Habituado ao ritmo do futebol inglês, o treinador instiga provas de competição duas vezes por semana, aceitando reptos de equipas britânicas, húngaras ou de selecções já em plena preparação para o Campeonato do Mundo de Espanha. Contra o Tottenham, alinham Meszaros na baliza, Virgílio, Zezinho, Eurico e Mário Jorge, Xavier, Lito e Nogueira, Manuel Fernandes, Oliveira e Jordão. Barão, Bastos e José Eduardo serão também utilizados.

Com desfaçatez, logo aos 4 minutos, o barbudo Ricky Villa recupera uma bola no seu meio-campo e inicia um slalom estonteante, batendo em velocidade vários adversários até concretizar o primeiro golo. Villa marcara um golo semelhante em Wembley, no Verão anterior, na 100.ª final da Taça de Inglaterra (vitória por 3-2 contra o Manchester City). Repete agora o gesto em Alvalade, deslumbrando colegas e rivais.

Uma dezena de minutos mais tarde, o Tottenham amplia a vantagem após a marcação de um pontapé de canto. Poderia ter sido o canto do cisne, mas «continuámos a jogar como sabíamos», lembra Virgílio. Um autogolo reduz a desvantagem e, em cima do intervalo, Oliveira serve Manuel Fernandes para o golo do empate. A um quarto de hora do fim, os mesmos protagonistas dão corpo ao terceiro golo do jogo e a uma vitória saborosa. «Ganhámos por 3-2 a uma das melhores equipas da Europa e foi um jogo extraordinário. Épico, corajoso, aberto. Ganhámos e jogámos muito bem. Foi pena não termos disputado mais jogos com equipas poderosas. Lembro-me de que, meses depois da saída de Allison, num almoço em casa de João Rocha, o presidente disse que a nossa equipa era uma das melhores da Europa. E acho mesmo que ele tinha razão... até se começarem a destruir alguns dos alicerces», reconhece Virgílio.

No final da época, quando fizer um longo balanço a Santos Neves, Allison valorizará a exibição de António Oliveira neste encontro: «Quando rende o seu melhor, é um dos melhores do mundo! A exibição dele diante do Tottenham é inesquecível. Ardilles estava do outro lado e a actuação de Oliveira foi brilhante.» António Oliveira recorda o jogo e o aplauso de Allison com saudade: «Tive treinadores, como Bella Guttman, que me elogiavam como pretexto para obter qualquer coisa. Allison elogiava-me sem cobrar nada. Em troca, eu dava a vida pela equipa. Julgo que a chave é essa: conhecer os 24 jogadores da equipa, percebê-los e tentar tirar o máximo de cada um.»

O encontro com os ingleses serve vários propósitos: alimenta o ego, retira complexos e mantém o ritmo competitivo. Na crónica do jogo em A Bola, Aurélio Márcio sintetiza aquilo que quase todos os pupilos de Malcolm Allison ainda subscrevem mais de trinta anos depois: «Com as suas virtudes e os seus defeitos, Allison põe a jogar quem corre, retira da equipa quem não corre, não se preocupa nem choraminga por este ou aquele jogador estar doente. Pura e simplesmente, olha para o plantel e põe outro a jogar. Allison fez do Sporting a mais competitiva equipa do futebol português [... ] e também o Tottenham se rendeu a Oliveira em superforma, dando a estes ingleses uma lição de como se deve jogar à chuva e na lama.» O único contratempo do jogo particular reside no cartão amarelo mostrado a Carlos Xavier, que priva o jogador de actuar na jornada seguinte em Vila do Conde, pelas regras da época.»

 

[*] «Burkinshaw será nomeado treinador do Sporting em Fevereiro de 1987 e ganhará o seu lugar no Hall da Infâmia do futebol do clube ao validar o afastamento do capitão Manuel Fernandes do plantel da época de 1987-1988.»

 

In.: ROSA, Gonçalo Pereira - Big Mal & Companhia : a histórica época de 1981-1982, em que o Sporting de Malcolm Allison conquistou a Taça e o Campeonato. 1ª ed. Lisboa : Planeta, 2018. pp. 195-198

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