Memórias de Peyroteo (32)
«ALGUNS ESTÁGIOS DA EQUIPA NACIONAL DE FUTEBOL
Fui convocado vinte vezes para fazer parte da nossa Selecção Nacional de Futebol, facto que me deu tempo de sobejo para apreciar como se cuidava da preparação da nossa equipa, com vista aos jogos internacionais.
Nomeado o seleccionador, eram-lhe prometidas todas as facilidades de modo a cumprir-se o plano de trabalhos estabelecido. Porém, escolhidos e convocados os jogadores para iniciarem os treinos de conjunto, surgiam as primeiras dificuldades: alguns dos jogadores, alegando razões de vária ordem, não compareciam, e outras vezes eram os próprios clubes a não os dispensarem, receosos de que os rapazes se aleijassem ou, mesmo, para não quebrarem o ritmo de preparação e treino da equipa do clube. E se compareciam à “chamada”, antes disso eram aconselhados a não se empregarem a “fundo” a fim de evitarem qualquer lesão…
Por tudo isto e, ainda, por outros motivos que me dispenso de referir, as sessões de treino da Selecção Nacional eram efectuadas utilizando meia dúzia (?) de jogadores tidos como “indiscutíveis”, de mistura com suplentes e, não raras vezes, para se formar equipa, recorria-se a elementos do chamado “grupo treinador”.
Decorridas umas escassas semanas de treinos quase todos realizados neste jeito, a equipa nacional seguia para o estágio, que tanto importava ser num magnífico hotel do Estoril ou Sintra, como na Colónia de Férias do Pessoal das Companhias Reunidas Gás e Electricidade, na Venda do Pinheiro.
Tantas vezes fiz parte da Selecção Nacional que, afastado dela há meia dúzia de anos, não experimento a mínima dificuldade em descrever o regime seguido nesses estágios, no respeitante às sessões de preparação física, treinos de futebol, alimentação, alojamento, etc. Com ligeiras alterações de ano para ano, o programa era mais ou menos este:
Das 8 às 9 - Ginástica;
Das 9,30 às 11,30 - Passeio - marcha (footing);
Das 12 às 13, aproximadamente - Almoço;
Das 13,30 às 15,30 - Descanso;
Às 15,30 - Passeio - marcha;
As 19 - Jantar
Das 22,30 às 23 horas - Recolher (deitar e silêncio…)
E cumpria-se? - perguntará o leitor. Eu conto: nos dias de treino de conjunto, a ginástica fazia-se no próprio campo de jogo, e porque não estavam presentes todos os componentes da equipa, impossível se tornava ensaiar esquemas de jogo-de resto o grupo representativo do nosso futebol ainda não estava escolhido e entrava-se naquilo a que eu chamava “o vira da Selecção”: trocava-se o extremo direito pelo esquerdo, substituia-se agora um médio, o defesa central passava depois para a ala direita, o interior esquerdo passava para extremo por troca com um “provável”, o defesa direito “virava” para a esquerda e, terminado este magnífico treino de conjunto, “virávamos” todos para o balneário, sendo a última volta do vira dada no sentido do hotel, porque o treino havia “puxado a reacção” para o almoço e a rapaziada tinha um apetite devorador… Após o almoço, os seleccionados descansavam; das 15,30 às 19 horas davam um passeio a pé e o regresso coincidia com a hora do jantar.
Recordando os bons tempos passados, vejamos qual a constituição normal das refeições, ou melhor, qual o regime alimentar e como se comportava e o que fazia a rapaziada durante as horas… vagas.
Por estar mais vivo na memória, tomarei por exemplo o que se passava na Venda do Pinheiro, onde o Pedro - excelente rapaz e óptimo mestre de cozinha - nos deliciava com os mais saborosos e bem apresentados manjares.
Esquema do horário de trabalho, refeições e sua composição
8 horas da manhã; - quadradinhos de chocolate e… uma hora de corta-mato, no decorrer do qual fazíamos alguns exercícios de ginástica. A seguir, quem achava conveniente fazia a barba e tomava um duche, mas também se podia lavar simplesmente a cara e ficar prontinho para o pequeno almoço, constituído por café com leite, pão com manteiga, compota, fruta ou sumo de laranja e, se o “cliente” quisesse, podia (em vez de tudo isto ou depois de tudo isto) pedir umas fatias de carne assada ou fiambre…
Depois do pequeno almoço, organizava-se um torneio de basquetebol ou voleibol entre equipas formadas, geralmente, por elementos do Sporting, Benfica e Belenenses. Os jogadores dos outros clubes, por serem em número reduzido, não chegavam para formar conjuntos, ficando como suplentes às outras equipas e, os restantes, enquanto duas turmas disputavam o renhido jogo, ora faziam “claque*’, ora contavam anedotas brejeiras para fazer rir os mais sizudos ou, alheando-se dos jogos, passeavam, pacatamente, pelas redondezas do edifício. A paródia acabava pouco antes do meio dia, para dar tempo aos preguiçosos que ainda não tinham feito a barba e, aos outros, para lavarem as mãos.
O almoço constava, invariavelmente, de:
Peixe: assado, frito ou cozido, acompanhado de batatas ou saladas de alface, tomate, etc. Às vezes surgia a riquíssima “bacalhoada com todos”;
Carne: bifes com batatas fritas, carne guisada com batatas ou assada, ou de qualquer outra maneira - ao gosto, talvez, do nosso Pedro, e que bom gosto ele tinha!!!
Como sobremesa, salvo erro, queijo, frutas várias e, por vezes, doce. Seguidamente, um cafezinho que, ou era servido - se assim se desejasse - na sala de jantar ou, então, a rapaziada ia ao café da terra tomá-lo. Depois, cada qual fazia o que lhe desse na real gana. Uns dormiam uma soneca, outros ouviam telefonia; havia um que “arranhava” umas coisitas no piano, jogava-se o loto e, às vezes, muito às escondidas - com uma sentinela a espreitar, não viesse alguém que proibisse e castigasse - jogavam o burro americano a “feijões sonantes” ou “papéis verdes de vintes”…
As 15,30 íamos para o pinhal e, logo que podíamos, sentávamo-nos à sombra das árvores e fazíamos… crítica! Ali é que era ouvir dizer mal - e bem… pudera não! - do regime dos estágios, de alguns dirigentes do futebol, dos males de que sofria - e infelizmente ainda sofre - o nosso desporto favorito e, como diria um espanhol, “de outras cosas más... Fervilhavam anedotas, trocávamos impressões sobre jogos passados e os futuros, recordávamos os marotos dos árbitros e chegávamos quase sempre à conclusão de que todos os jogos perdidos se deviam às más actuações dos homens do apito!!!
Se do passeio voltávamos relativamente cedo, ainda havia quem, antes do jantar, bebesse um sumo de laranja, comesse uma ou duas bananas, ou então, numa visita à cozinha, o bom Pedro sempre arranjava uma “sandwich” de qualquer coisa boa e apetitosa. Entretanto, o relógio marcava as 19,30. Ao jantar tínhamos sopa, um prato de peixe e outro de carne, frutas e doce. Mas se alguém não tivesse gostado do peixe ou da carne, arranjava-se outra coisa. Ovos? Uma “tortilha”? Ordem para a cozinha e o Pedro executava-a sempre de bom grado, prontamente. Quanto ao vinho, servia-se em garrafinhas individuais de três decilitros, mas porque uns bebiam pouco ou nada, os outros - alguns, claro - aproveitavam os restos e ainda as garrafinhas dos jogadores que, por qualquer motivo, faltavam às refeições. Entenda-se, no entanto, que não se exagerava na bebida. Depois do jantar, uma nova visita ao café, tomava-se uma “bica”, acompanhada de uma bebida mais forte - por estarem habituados a isso - jogava-se uma partidinha de bilhar e… vamos embora porque já são dez e meia. Às 11 horas, mais ou menos, a rapaziada entrava nas camaratas, não para dormir porque ainda era cedo - lá em casa deitavam-se mais tarde… -e havia muito que fazer… Por exemplo: endireitar a cama, que aparecera posta ao contrário; fazê-la de novo porque o lençol estava à “espanhola”, ou colocar os ferros no seu lugar para não darmos um trambulhão, pois a cama estava posta em “sentido” !!! Aos que tinham a infelicidade de adormecer rapidamente, pintavam-se-lhe façanhudos bigodes. Aí por volta das onze e meia, estando já alguns rapazes com apetite, enviava-se um emissário ao amigo Pedro, e lá vinham umas “ Sandwiches” de carne assada (segundo se afirmava, alguns rapazes, lá em casa, estavam habituados à ceia).
Na camarata dos “sportinguistas”, o Jesus Correia era o “apaga a luz”, porque o interruptor estava junto da sua cama. Aí por volta da meia noite o Necas fazia funcionar o aparelho por ordem do nosso “capitão de equipa”, e à excepção de um travesseiro vindo do “exterior” ou do “interior” que atravessava, pelo ar, a escuridão do quarto para cair em cima de um pacato futebolista, o “resto era silêncio”…;
Passou-se um dia na Venda do Pinheiro; no outro…”vira o 'disco e toca a mesma”- como por lá se dizia!
É verdade que nem todos os estágios decorreram do mesmo modo, não sendo minha intenção criticar agora o que se fazia há meia dúzia de anos. Tudo isto serve apenas para ilustrar a minha discordância com alguns estágios da Selecção Nacional - tal como se faziam no meu tempo, não lhe encontrando outro benefício que não fosse o de permitirem a cura de mazelas físicas, o que, diga-se desde já, era muito pouco… E por não concordar com eles, fui alvo dos mais desencontrados comentários, alguns mais picantes e salgados do que os suculentos cozinhados confeccionados pelo Mestre Pedro!
A minha ausência causava engulhos não só a alguns jogadores como, também, a uns tantos dirigentes e ao público que, por ser o “Zé Pagante” dos campos da bola, se julgava no direito de criticar os meus actos, aliás sem curar de saber dos motivos do meu procedimento. Claro que os colegas, dirigentes e alguns adeptos do futebol que, directamente, me falavam no caso, ficavam completamente esclarecidos e, no geral, acabavam por me dar razão.
O pomo da discórdia resumia-se nisto: “Pois se os outros seleccionados vão para o estágio, porque não havia de ir eu?” Diziam-me em tom de conselho ou censura: “Não vês que a tua atitude pode não ser compreendida pela grande maioria dos teus companheiros de equipa e daí resultarem desentendimentos entre vocês todos? E se todos procedessem como tu, o que sucederia?”. E foi exactamente por pensar nos efeitos da reação de alguns colegas, que estive quase um mês num hotel do Estoril - um mês de almoços e jantares opíparos, porque o resto do dia era absorvido, em Lisboa, pelos meus afazeres verdadeiramente profissionais-eu e outros companheiros de equipa. Foi, ainda, pela mesma razão que estive vários dias na Venda do Pinheiro - duma vez quinze dias seguidos. De resto, ia para estágio à quarta ou quinta-feira, para “acamaradar” com a rapaziada, fazer ambiente e regressava à segunda-feira.
Se, naquele tempo, pudesse responder clara e publicamente à observação-censura…”e se todos procedessem como tu, o que aconteceria?” - responderia apenas isto: era o melhor que poderia suceder à equipa! Explico porquê: em minha modesta opinião que, claro está, poderá não ser a melhor e mais acertada, tal como decorriam alguns estágios da Selecção Nacional de Futebol, eram prejudiciais aos jogadores e, consequentemente, à equipa nacional. Seguia-se uma orientação a todos os títulos inadequada, imprópria e, por vezes, até condenável, nos capítulos da higiene alimentar e preparação atlética, independentemente de ocorrerem outros factores não menos condenáveis e que, por razoes bem compreensíveis, não desejo relembrar.
Apresentava-se como razão fundamental dessas concentrações da equipa nacional a necessidade de submeter os jogadores a uma raciona] e cuidada preparação físico-atlética, por se entender, talvez, que nos seus clubes os jogadores não eram rodeados dos cuidados indispensáveis. Mesmo que assim fosse, era lógico pensar-se que chegariam quinze ou vinte dias de estágio para se conseguir tão almejado e útil fim? Em meu entender, não. E para melhor se preparar a equipa nacional, seria benéfico sujeitar os jogadores, durante quinze ou vinte dias, a um regime de treinos inteiramente diferente daquele que lhes era imposto nos seus clubes? Creio também que não. Mesmo que os responsáveis pela preparação da equipa nacional considerassem enfermiça, defeituosa ou insuficiente a preparação dos jogadores nos seus respectivos clubes, seria aconselhável aumentar, intensificar, forçar a preparação atlética dos seleccionados nos quinze dias que durava o estágio e antecediam a realização de um jogo de futebol com a responsabilidade de um encontro internacional? Salvo melhor e mais abalizada opinião, eu discordo! Se pelo contrário, nos seus clubes os jogadores estivessem sujeitos a preparação considerada violenta - o que, na verdade, não se verificava - seria aconselhável fazê-la baixar, repentinamente, no curto prazo de quinze ou vinte dias? Creio que não. A indiscriminada higiene alimentar, a sobrecarga nesses quinze dias, não seria propícia a desequilíbrio orgânico, más digestões, aumento ou diminuição de peso - por vezes inconvenientes? Creio que sim.
Todos nós sabemos o que nos acontece quando, uma vez por outra, vamos jantar fora, num hotel ou restaurante. A mudança de ambiente, a profusão de luzes, o movimento, os pratinhos com rolinhos de manteiga espalhados sobre a mesa, a convidativa apresentação das travessas onde nos é servido o peixe ou a carne, a gentileza dos criados, tudo, enfim, contribui para que nessa noite de paródia se coma e beba mais do que é normal. Aos rapazes escolhidos para constituírem a Selecção Nacional de Futebol, acontecia a mesma coisa, quando entravam em estágio.
Ninguém se convence, nem eu quero insinuar, que os rapazes, só pelo facto de haver muito e bom, apanhavam indigestões ou bebiam em demasia. Nada disso, entenda-se. Apenas se passava com eles aquilo que acontece a qualquer cidadão pacífico que, uma ou outra vez, muda de ambiente, janta ou almoça fora de casa e, mercê de variadíssimos factores concorrentes, ultrapassa a bitola normal.
Do que não me restam dúvidas - sendo este o meu ponto discordante - é que o conjunto de circunstâncias verificado nos estágios, alterava, repentinamente, os hábitos dos jogadores, facto que, quanto a mim, não gerava benefícios. Quase se pode dizer que quando o indivíduo começava a aclimatar-se ao novo regime, quer dizer, quando desapareciam os efeitos do período transitório, realizava-se o jogo e findava o estágio. Claro que em quinze ou vinte dias muito pouca coisa útil se pode fazer e alguma coisa se fez nalguns períodos de estágio - mas, na maioria deles, a “mecha não dava para o cebo”…
Na realidade, os seleccionados disfrutavam, roesse lapso de tempo, de comodidades excepcionais, vivendo quinze dias como se lhes tivesse saído a sorte grande. Dispor de quarto com casa de banho anexa; descansar após o almoço, comodamente sentado num confortável “maple” de hotel de primeira classe, situado na maravilhosa Costa do Sol; gozar de mesa farta e, por fim, tomar o café no “hall” do hotel, servido por criados fardados, tudo isto, na nossa terra, constitui luxo dispensável, sobretudo para se atingir o fim em vista, com o estágio de atletas. É que a brusca transição prejudica em vez de beneficiar. Admite-se, porém, que aos jogadores fossem oferecidas todas essas comodidades, sobretudo no tocante a alojamentos: bom quarto e boa cama. Contudo, embora muitos jogadores saibam cuidar de si próprios relativamente à higiene alimentar, esse importante pormenor não pode, nem deve, deixar-se ao critério do atleta. Porquê? Não vejo necessidade de repetir algumas passagens do que atrás deixei escrito.
Ora, eu evitei sempre desfrutar de tantas comodidades. Preferi manter a disciplina, a regra, o método que a mim próprio impus, no meu modesto lar, durante todo o tempo em que pratiquei desporto, e confesso não estar arrependido ainda hoje.
Fui censurado e a minha atitude comentada em vários tons. Afinal, de que lado estava a razão?
Também, enquanto joguei futebol, fugi sempre dos “banquetes” logo após o jogo entre as duas equipas. Tal facto, claro, como não podia deixar de ser, deu ocasião aos mais desencontrados e azedos comentários… E por que não gostava eu de assistir a tais festanças? Di-lo-ei em poucas palavras: depois de hora e meia de esforço físico, de tanta emoção, de tanto desgaste de nervos, não me parecia aconselhável sentar-me a uma mesa e vá de comer uma sopa de camarão, uns filetes de pescada com molho de “mayonaise”, escalopes de vitela com batatas salpicadas, muito bem temperadinhos, etc., tudo isto regado a bom vinho. Depois café e conhaque; aos brindes, espumante, licores e outras bebidas que tais…
Não, amigos. Depois dos jogos… o melhor será uma refeição cuidada, higiénica, em nossa casa, em sossego, em ambiente limpo do fumo de bons cigarros e óptimos charutos…
É certo - e já o afirmei - que o jogador deve saber cuidar de si, pelo que, nos “banquetes de confraternização”, deveria limitar-se a comer pouco e beber pouco também, ou, mesmo, nada. Creio que isso seria tarefa algo difícil. É que sempre aparece quem nos convide a brindar pela Suíça - se o jogo foi com os helvéticos e… um “Arriba Espana” é inevitável… O melhor é não ir lá…»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). p 203 - 2011