Memórias de Peyroteo (29)
« PORTUGAL - ESPANHA
Das vinte vezes que fui convocado para representar Portugal em jogos internacionais de futebol, cinco foram contra a Espanha.
1.º - Em Lisboa, a 12 de Janeiro de 1941. Resultado: Empate 2-2;
2.º - Em Lisboa, a 11 de Março de 1945. Resultado; Empate 2-2;
3.° - Na Corunha, a 6 de Maio de 1945. Resultado: Derrota 2-4;
4.° - Em Lisboa, a 26 de Janeiro de 1947. Resultado: Vitória 4-1;
5.° - Em Lisboa, a 20 de Março de 1949. Resultado: Empate 1-1.
Nestes cinco encontros marcaram-se 21 golos, sendo 11 de Portugal e 10 da Espanha.
É curioso notar que embora se trate de número ímpar, cada equipa averbou 1 vitória, 3 empates e 1 derrota, ficando Portugal com a vantagem de 1 golo, pois marcou 11 e sofreu 10. Decerto, não será levado à conta de vaidade dizer que dos 11 tentos, 7 foram marcados por mim.
Se, quando eu era um rapazola de 13 ou 14 anos e jogava futebol na equipa dos miúdos da minha terra angolana, alguém me dissesse que ainda um dia vestiria a camisola dás quinas para um encontro internacional contra Espanha, eu duvidaria do estado mental do… bruxo! No entanto, a minha reacção ao escutar previsão semelhante mas referente a jogos contra quaisquer outras nações, como, por exemplo, a Itália, Alemanha, Suíça, etc., não seria a mesma que contra “nuestros hermanos”. É que, em Angola, mormente em Moçâmedes, não só a rapaziada adepta do-futebol mas todo o povo da terra, vibra intensamente com a realização dos jogos entre Portugal e a Espanha. Pode a equipa portuguesa jogar contra qualquer outra de categoria muito superior à dos espanhóis, que o caso não assume aspecto de acontecimento nacional.
Naquele tempo, as notícias referentes ao futebol metropolitano só chegavam a Moçâmedes quase um mês depois dos factos consumados, já quando, na Metrópole, o caso havia passado à história e ninguém se lembrava das “burrices” cometidas pelo seleccionador quando escolhera os jogadores, nem dos golos “perdidos infantilmente” ou da incapacidade de certo jogador “que já está velho mas tirou assinatura para a selecção…”. Em Angola líamos as notícias referentes ao jogo com tanto interesse como se ele se tivesse realizado na véspera, e daqui se conclui que, lá como cá, o Portugal - Espanha em futebol é sempre um grande acontecimento desportivo.
A 12 de Janeiro de 1941 disputar-se-ia em Lisboa mais um jogo de futebol entre as equipas representativas de Portugal e da Espanha. O bruxo de que eu duvidaria, acertou na previsão e a minha estreia neste grande encontro era, agora, uma realidade.
Nas duas ou três semanas que o antecederam não se falava noutra coisa; a procura de bilhetes era extraordinária e o campo das Salésias seria pequeno para acomodar quantos desejavam assistir ao prélio.
O seleccionador escolheu um lote de jogadores com o qual formaria a nossa selecção. Havia dúvidas na inclusão deste ou daquele elemento e alguns jornalistas da especialidade entregavam-se ao trabalho de discordar com o seleccionador quanto a escolha dos jogadores, mas o certo é que, no que me dizia respeito, todos estavam de acordo, felizmente…
Perturbado e enervado por ir jogar contra os nossos vizinhos espanhóis? Não, francamente não. Para mim, tratava-se simplesmente de um jogo internacional, com todas as responsabilidades inerentes a tais encontros sem, contudo, esquecer que perder ou ganhar são consequências lógicas do próprio jogo. No entanto, se é certo que o jogo em si não constituía razão suficientemente forte para me enervar, a verdade é que o público entusiasta do futebol, ao exigir, descabida e incompreensivelmente, do jogador aquilo que ele muitas vezes não pode dar, preocupava-me um tanto. De resto, sobre este assunto, já disse o que penso.
Afinal, o jogo disputado em 12 de Janeiro de 1941 não teve história, assinalando-se apenas que, ao contrário do habitual, em vez de perdermos, empatámos a duas bolas - dois tentos marcados por mim. E já que do encontro pouco ou nada resultou digno de registo, julgo oportuno aproveitar o ensejo para exteriorizar o que sempre pensei acerca do tão decantado complexo de inferioridade da equipa portuguesa quando em jogo contra o grupo nacional espanhol.
Matematicamente, o problema pode ser posto deste modo: em futebol, Portugal está para a Espanha assim como o Olhanense está para o Sporting.
Em primeiro lugar teremos de encontrar o motivo principal, justificativo dos desaires sofridos pela equipa algarvia quando jogava contra o Sporting e que era, sem dúvida, a comprovada diferença de categoria futebolística existente entre as duas equipas.
Que o Olhanense possuía, no meu tempo, alguns jogadores de grande valia é incontestável, mas a verdade manda que se diga que o Sporting estava melhor apetrechado. Ora, se são os bons jogadores que formam as boas equipas, não restam dúvidas de que a do Sporting era em muito superior à do Olhanense e, portanto, sem a menor hesitação, encontro a chave do problema: o Olhanense perdia com o Sporting porque o primeiro era inferior ao segundo.
Poderá argumentar-se que o Olhanense vencera equipas tão boas ou melhores que a do Sporting, mas esta observação não destrói, por completo, o meu ponto de vista e a finalidade a que pretendo chegar.
Reconhecido e provado que a turma algarvia era inferior à dos “leões”, procuremos outros factores concorrentes para inferiorizar a equipa de Grazina frente à de Álvaro Cardoso. Os jogos que os algarvios disputavam perante o público, na sua terra, ou os que realizavam em Lisboa contra qualquer equipa que não a do Sporting, despertavam sempre muito interesse na massa associativa do Clube, independentemente da vontade de vencer que animava os componentes da equipa, mas não estou em erro se afirmar que todos os adeptos do Olhanense não se importariam que a sua equipa mais representativa perdesse todos os jogos de um campeonato se tivessem a certeza de vencer o Sporting Clube de Portugal… Matariam o carneiro que hoje deve estar muito velhinho!!!
Os anseios e as reacções do público olhanense quando a sua equipa defrontava o grupo leonino, eram totalmente diferentes do que sucedia quando o adversário era, por exemplo, o Benfica, o Belenenses ou o Futebol Clube do Porto. Esse ardente desejo de vitória, o prazer e alegria que a derrota do Sporting lhes proporcionaria seria de tal modo forte e grande, que os dominava, os perturbava e fazia esquecer, até, a inegável diferença de categoria existente entre a equipa de que são adeptos e a adversária. Por isso, não poucas vezes, chegaram a gozar, antes da realização do encontro, o prazer de uma vitória que, afinal, embora estivesse plenamente ao seu alcance, se transformou em amarga derrota.
O jogador sabe de tudo isso porque vive o mesmo ambiente, vive dia a dia em contacto com a massa associativa do Clube, conhece os seus desejos, sente-os, vibra com eles e… enerva-se, perturba-se, excita-se mesmo sem o desejar. O jogador sabe, também, que a derrota trará, para os amigos do Clube, um profundo desgosto, e como não lhe bastasse já a responsabilidade do jogo em si, vem ainda a “responsabilidade” de alegrar e consolar a gente da sua querida terra. Embora alguns jogadores admitam a vitória tendo em atenção o melhor apetrechamento técnico, táctico e, porventura, físico do adversário, sentem que, se perderem o jogo, os seus adeptos não lhes desculparão a derrota; a semana seguinte será um pesadelo porque, a toda a hora e a todo o momento, ouvirão falar do desaire sofrido:-”O Olhanense perder outra vez com o Sporting? Então nunca mais ganhamos? Vê lá isso no próximo domingo! Não nos dês esse desgosto; atira-te a eles sem medo! Dá cabo deles; vocês têm que ganhar desta vez…
Ora bem ; chegámos ao ponto: Não será isto o que se passa nas semanas que antecedem um Portugal - Espanha? Não será verdade que se a Equipa Nacional perder um jogo contra a Suíça, a Itália ou o Egipto, o leitor se arrelia menos com isso do que se a rapaziada sofrer uma derrota da Espanha?
Com os jogadores da Selecção Nacional passa-se a mesma coisa do que com os futebolistas olhanenses: Todos ouvem aquelas frases e procuram afastá-las do pensamento mas, por muito fortes de espírito que sejam, não conseguem alhear-se por completo da onda de tristeza - às vezes indignação! - que o grande público fará levantar contra eles se perderem um jogo que “é preciso” ganhar!!! (Como é tão mal compreendida a ideia desportiva!!!) Sendo assim - e assim é na realidade - parece-me que o público contribue, sem querer, para a inferioridade da nossa equipa em jogo contra a Espanha, por que se esquece da inegável superioridade futebolística dos nossos vizinhos e crê, seguramente, na vitória. Chega o dia do jogo, vai para o campo de bandeirinha na mão, supondo que os jogos se ganham só com gritos de incitamento… Surgem as dificuldades, a equipa nacional não dá o “rendimento que se esperava”, baixam as bandeirinhas e ouvem-se os assobios! Que os espanhóis dispõem de um campo de recrutamento de jogadores muito maior do que o nosso; que são 100% profissionais há mais de uma vintena de anos; que mercê desses factos o seu futebol progrediu incomparavelmente mais do que o nosso; que a orgânica do futebol espanhol é muito superior à nossa e, por isso, lhes possibilitou a cuidada preparação de jovens com qualidades, fazendo deles excelentes praticantes da modalidade - de tudo isto o público se esquece lamentavelmente! Quer, deseja, quase exige que os nossos seleccionados façam o milagre de ganhar aos espanhóis!
As manifestações de simpatia dispensadas aos jogadores no decorrer dos jogos são necessárias, dão coragem e os rapazes sabem apreciá-las; apoiam-se nelas para fazerem mais e melhor, mas o ambiente de segura vitória que grande parte dos entusiastas da bola cria à volta do encontro, menosprezando o real valor do adversário e a ideia desportiva, é prejudicial ao público que as criou e aos jogadores. O pensamento de ganhar o jogo está não só no espírito do público como no dos componentes da equipa, mas com uma diferença: os adeptos da bola admitem a vitória como certa, ignorando - ou fingindo ignorar - que o adversário, regra geral, nos é superior; nós, os jogadores, vamos para o campo com vontade de ganhar o encontro, lutamos pela vitória até ao limite das nossas forças, mas não olvidamos o valor da equipa que defrontamos. Se assim sucedesse, o resultado, na maioria dos casos, seria catastrófico -ainda mais desagradável quanto o foram alguns registados nos jogos contra a Espanha.
É dever de ofício nenhum jogador e, consequentemente, nenhuma equipa ignorar o valor do adversário porque, ciente dele, procurará dar-lhe luta explorando os seus pontos fracos. O futebol é um jogo e em jogo tudo é possível.
Os resultados conseguidos anteriormente pela equipa das cinco quinas, pela expressão dos números, podem considerar-se bons e confirmam a “gloriosa incerteza do desporto”, mas não atestam a nossa superioridade técnica e física (preparação atlética). Nas tácticas sim, fomos superiores e, por isso mesmo, pudemos averbar resultados lisonjeiros. Na série de cinco jogos em que tomei parte verificou-se igualdade absoluta no que respeita a vitórias, empates e derrotas, com um golo a nosso favor. Mas os números são, muitas vezes, enganadores.
Nasceu triste o dia 12 de Janeiro de 1941, e a tarde era cinzenta, sem sol, antes de chuva impertinente. O campo das Salésias estava completamente cheio daquele público que tinha quase por certa a vitória da equipa nacional porque, em seu entender, os espanhóis estavam a jogar menos do que nós.
A marcha dos campeonatos em Espanha foi prejudicadíssima pela guerra civil que enlutou o País vizinho e amigo, mas à data do encontro que íamos disputar, já o seu futebol se encontrava em franco ressurgimento. A regularidade dos campeonatos oficiais havia trazido aos jogadores espanhóis o indispensável poder atlético e apuramento técnico. Tudo ou quase tudo voltara à normalidade, pelo que os nossos eternos grandes rivais no desporto, estavam bem preparados.
Quais os motivos para tão exagerado optimismo?
O nosso público tinha ainda bem presente na memória a fraca exibição da equipa espanhola que nos visitara dois anos antes, menosprezando, porém, este pormenor importante: em dois anos, ou melhor, em duas épocas, os espanhóis trabalharam a fundo pelo ressurgimento do seu futebol. Organizaram os campeonatos, disputaram muitos jogos e isso trouxe-lhes o que haviam perdido durante a guerra ^civil: força física e boa execução técnica.
É curioso anotar que se julgava possível a vitória dos portugueses mais pela inferioridade momentânea dos espanhóis, do que pela melhoria ou valor do futebol português, donde se conclui que sempre se considerou o futebol espanhol superior ao nosso…
Os “optimistas”, fazendo juízos errados, anteviam a hipótese de batermos… em mortos! Admitindo que assim sucedesse, para mim, pessoalmente, uma vitória nessas circunstâncias era destituída de valor.
A verdade, porém, é que, com os espanhóis a jogarem quase o seu normal, podiamos ter ganho o encontro de 12 de Janeiro de 1941. O estado do terreno, cheio de lama, prejudicou-nos muitíssimo, beneficiando os nossos adversários que, no seu País, jogam quase sempre em campos encharcados.
Registou-se um empate a duas bolas, tendo as duas equipas jogado francamente mal, não chegando a mostrar o seu valor. Na minha opinião, este encontro não nos deu ensejo para se ajuizar do valor do futebol espanhol nesse momento, mas julgo que não estavam a jogar menos do que nós, apesar das contrariedades e desgraças por que passaram. E que, embora com o terreno enlameado e, portanto, mau para se jogar bom futebol, os espanhóis mostraram-se muito superiores aos portugueses nos pormenores físico-técnicos do jogo, só falhando, como de costume, na organização táctica da equipa, do que resultou preciosíssima vantagem para o grupo português e que permitiu aos seus componentes esconderem um tanto as suas dificuldades técnicas com a liberdade de manobra de que dispunham.
Mas um dia virá em que os espanhóis encontrem pela frente uma equipa portuguesa físico-técnica-tacticamente bem preparada. Se isso suceder, então os nossos vizinhos terão muito que contar… Assim eles se mantenham agarrados aos antiquados processos de jogo!
Para a história desse encontro ficou anotado, nas críticas e comentários, que eu marquei um golo, mas nos apontamentos que possuo acerca da minha vida de futebolista, estão registados como marcados por mim os dois golos obtidos pela equipa nacional.
No jornal “Os Sports”, n.° 2,448, de 13 de Janeiro de 1941, escreveu o meu amigo e jornalista Manuel Mota:
“Carlos Pereira marca a penalidade com um pontapé dirigido directamente às redes. Echevarria defende, atrapalha-se coro a bola e larga-a para dentro da baliza. Quando Peyroteo, aliás oportuno, deu o pontapé, já a bola tinha ultrapassado a linha de “goal”.
Ora, em apontamento à margem do meu “carnet” onde se encontram anotados todos os golos que marquei, lê-se:
“Carlos Pereira atira à baliza, o guarda-redes espanhol larga a bola que caiu sobre o risco fatal, mas não o ultrapassou porque a lama prendeu o esférico. Eu, seguindo a marcha da bola, toqueia-a para dentro da baliza e, só então, o árbitro apitou para “golo”.
Não me foi atribuído um tento que, na realidade, marquei nesse jogo em que tudo me correu mal. Paciência! É um a menos na conta de muitas centenas…
Nesse mesmo número do jornal “Os Sports” um crítico da especialidade escreveu:
“Peyroteo, muito vigiado e sem domínio de bola, não conseguiu corresponder ao que dele se esperava A luta, por vezes irregular, que lhe deram os adversários, deve tê-lo perturbado um pouco…”
Só eu sei e só eu senti essa luta, por vezes irregular, e o desgaste físico causado por ela e pela lama…
Equipa portuguesa: Azevedo; Simões e Guilhar; Amaro, Carlos Pereira e Francisco Ferreira; Mourão, Pireza, Peyroteo, A. de Sousa (Pinga) e João Cruz.»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 177 – 184