Memórias de Peyroteo (25)
(cont.)
«O V Portugal - Suíça em futebol, disputado em Basileia a 21 de Maio de 1945, terminou com a vitória dos suíços por 1-0- Perdemos bem e os nossos adversários ganharam melhor.
Analisando e comparando sector por sector, fomos inferiores no ataque e iguais na defesa. A meio campo ainda trocámos passes interessantes e fizemos algumas jogados de mérito, mas próximo da área suíça tudo se embaralhava… O “ferrolho suíço” perturbou a avançada portuguesa. De resto, a equipa suíça jogou quase toda ela sobre a defesa, procurando contra-ataques rápidos, de surpresa.
A nossa defesa, sim, trabalhou muito e jogou bem, cometendo, apenas, um erro, ou melhor, teve um momento de hesitação e sofreu o golo que ditou o resultado: na marcação de um livre, os nossos defesas hesitaram em qual deles devia guardar o interior suíço; entretanto a bola partiu e ele, sozinho, com um ligeiro toque, fez o golo - um tanto sem brilho mas que contou como se tivesse nascido de uma óptima jogada…
De resto, há sempre um pormenor que nos leva a perder a maioria dos jogos internacionais: a falta de classe, a falta de verdadeira categoria internacional da maior parte dos elementos que formam a equipa nacional portuguesa. Por carência de intuição para o futebol? Não! Muito têm feito os rapazes escolhidos para defenderem as cores da bandeira nacional no respeitante a competições desportivas internacionais, especialmente em futebol. O mal é outro, vem de longe, é o problema de sempre: as deficiências de “orgânica”.
Ainda há bem pouco tempo tive o prazer de conversar com o Francisco Ferreira - o grande “ Chico” do Benfica - e, como não podia deixar de ser, recordámos os grandes desafios entre o seu e o meu clube, os maus resultados da nossa equipa nacional - do nosso tempo é claro - e até o “penalty” que o “Chico” falhou no jogo contra a Espanha, na Corunha. Contristado, como se o caso se tivesse passado ontem, o “Chico” disse: “Se eu tivesse marcado aquela “batata”, os espanhóis, daí por diante, eram “canja”… Atirei para fora e levámos 4 “batatas” contra 2! Mas eles eram melhores do que nós!!!”
Recordámos várias peripécias dos nossos jogos internacionais e, entre eles, o que disputámos em Basileia - não propriamente acerca do jogo, mas sobre o regresso da equipa nacional. Eu conto: Como já disse, para a Suíça fomos de avião e muito embora o “Chico” e outros nossos camaradas tivessem vomitado quase as tripas à chegada a Genebra - no momento em que o “piloto” fez inclinar o avião ora para a esquerda, ora para a direita, de modo a melhor podermos apreciar a vista aérea da linda cidade de Genebra - ambos estávamos de acordo em que a viagem de regresso foi muitíssimo pior! Setenta horas de comboio chegam para arrasar qualquer valentão, mas como se isso não bastasse, lutamos com dificuldade de alojamento e até passámos fome!!! Admiram-se? Ora vejamos.
De Basileia a Paris tudo foi normal, mas de Paris a Lisboa as coisas correram o pior possível para os jogadores - e digo para os jogadores porque os dirigentes não sentiram tanto…
Não foi possível arranjar camas para todos e as poucas que se conseguiram destinaram-se, e muito bem, aos rapazes do Belenenses que teriam de jogar um desafio no dia seguinte ou dois dias depois da chegada a Lisboa. Conseguiu-se, pois, arranjar algumas camas, uns tantos lugares de l.ª classe e outros de 2.ª. Os dirigentes - cansados dos banquetes e consequentes discursos - ocuparam os lugares de primeira classe e nós, os jogadores, que apenas havíamos perdido com os suíços - sem esforços nem canseiras - fomos para a 2.a classe… Pois não são eles quem leva as “gentes” aos campos da bola? Não são eles a ocupar os postos cimeiros? Daí a razão e o direito de ocuparem, também, os melhores lugares nas longas, enfadonhas e maçadoras viagens!
O leitor perguntará: “mas todos os dirigentes são assim? Todos procedem da mesma maneira?” - Não, felizmente!
Os jogadores passaram noites sem dormir e muitas horas sem comer. O comboio não trazia a carruagem-restaurante e os nossos dirigentes, na estação, em Paris, compraram, para nós, uma merenda composta de 2 “sandwiches”, 2 bananas, 2 laranjas e uma garrafa de laranjada ou cerveja. Comido o lanche, a rapaziada pensou em comprar, em qualquer estação de caminho de ferro onde o comboio parasse, os alimentos de que necessitava. Mas, qual quê? Pois se os franceses não tinham quase que comer, como poderiam vender aos outros o que precisavam para eles?
A certa altura da viagem, o Teixeira - lembram-se do “gasogénio” do Benfica? - o Teixeira, dizia, apareceu-nos com uma lata na mão, a qual continha, no fundo, uns restos de sardinhas e molho de tomate, acompanhando o repasto com um pouco de pão! A rapaziada logo quis saber a proveniência do petisco, mas o “gasogénio” negou-se terminantemente a indicá-la, e só coagido sob ameaça de ser atirado pela janela fora, indicou o compartimento de l.ª classe onde obtivera aqueles restos de sardinhas e de pão. Para lá nos encaminhámos mas encontrámos a porta fechada e as cortinas corridas!
Silêncio absoluto!… Batemos uma, duas vezes e só depois de o Amaro e o Chico Ferreira declinarem as suas identidades, a porta do compartimento se abriu o suficiente para verificarmos que havia ali um autêntico “simpósio” - no verdadeiro sentido da palavra!… Não faltavam as latas de conserva, compotas, pão, frutas, etc.!!! Todo aquele “material comestível” havia sido levado de Lisboa para a Suíça, pensando-se já na eventualidade de a equipa nacional vir a precisar de alimentação suplementar, admitindo-se, por natural e evidente, que a guerra teria criado graves dificuldades, especialmente em França.
Tudo foi previsto cautelosamente, mas o certo é que, na Suíça, nada nos faltou. Do que leváramos só da compota comemos um pouco aos pequenos-almoços; as restantes provisões adquiridas em Lisboa, eram agora saboreadas pelos ocupantes dos lugares de 1ª classe…
Como é de calcular, o facto provocou uma barulheira dos diabos, mas os jogadores nada ganharam com isso! Logo a seguir a este incidente, o Ruben - funcionário da Federação e que já dera a um jogador o lanche que lhe coubera em Paris - desceu do comboio, na primeira estação, em busca de mantimentos, mas só conseguiu comprar dois ou três quilos de cerejas, que distribuiu por alguns rapazes, pois nem todos aceitaram a oferta! De resto, já alguns jogadores, noutras estações anteriores, haviam ido em busca de comida, mas nem cerejas encontraram…
Se a memória não me falha, pretendeu-se, logo a seguir à distribuição da fruta, distribuir pelos jogadores certa quantidade de “francos” para tentarem, ainda, comprar qualquer coisa de comer noutra ou noutras estações. Um dos internacionais recebeu essa meia dúzia de “francos” e, acto contínuo, atirou-os pela janela fora… É que de dinheiro não tínhamos nós falta; o que não encontrávamos em parte nenhuma era “o que comprar para comer”… A não ser que fôssemos à “loja” que estava instalada num dos compartimentos de 1.ª classe, cuja denominação comercial e privada era a de dirigentes.
E aqui tem o leitor a história resumida da fome por que passou a equipa nacional de futebol quando regressava da Suíça, onde fora disputar o V Suíça-Portugal em futebol.
É bonita a história, não é?
O futebol deu-me de tudo: algum dinheiro, boas passeatas, muita pancadaria e… fome!
Dos fracos nso reza a história, não é verdade? Mas por muito estranho que pareça, continuo a ter saudades… da bola!
Na nossa terra há muito boa gente que só vai ao futebol quando 0 Sol brilha nas alturas! Se o tempo ameaça chuva, ficam em casa ouvindo o relato pela telefonia, ou vão ao cinema e lêem o jornal da noite. Futebol em dia de chuva não lhes agrada…
Ora, na semana que precedeu a realização do VI Portugal - ‘Suíça, disputado em Lisboa no dia 5 de Janeiro de 1947, nem todos os dias choveu e, por isso, a tal “boa gente” dos dias primaveris, tratou de arranjar, com a devida antecedência, os bilhetinhos para assistir ao jogo, sabido como é que, para os desafios internacionais, nem sempre se conseguem os bilhetes de entrada no campo.
Eu fui sempre uma vítima dos carolas que julgam ser^ muito fácil aos jogadores conseguirem quantos bilhetes querem. É certo que a Federação teve sempre em conta a nossa qualidade de jogadores da Selecção Nacional e, por isso, nos reservava uma razoável quantidade de bilhetes - pagos, é claro - e nos oferecia três ou quatro entradas de “circulação superior”, mas assim mesmo, os bilhetes-' reservados nunca chegavam para atender os pedidos, o que dava ocasião a zangas, aborrecimentos, etc., etc… Sucedeu, porém, que para este encontro arranjei tantos bilhetes quantos os necessários para satisfazer os interessados que, com uma semana de antecedência, me haviam assediado, mas por que na ante-véspera do dia do jogo choveu torrencialmente, a maior parte dos pedinchões não tornou a aparecer, e eu fiquei com quinhentos e tal escudos de bilhetes na algibeira!!! Fiz constar, depois disto, que não mais requisitaria bilhetes à Federação, por não estar disposto a gastar dinheiro inutilmente mas, mais tarde, achava graça aos que, embora mal os conhecendo, me pediam bilhetes e diziam logo: . “Olhe que eu sou daqueles carolas que aguentaram o Portugal - Suíça até ao fim e, como recordação, guardei este bocado de bilhete!…- Claro que, para esses, só quando foi totalmente impossível é que não os satisfiz, mas estou em crer que nenhum deixou de ir ao futebol! Aliás, mereciam a atenção de serem atendidos.
A chuva diluviana que caiu no sábado e no dia do jogo não impediu que 30 mil pessoas fossem ao Estádio Nacional assistir ao VI Portugal - Suíça e, quanto a mim, esta foi a faceta mais curiosa: num momento em que o jogo estava interrompido, o defesa suíço Steffen, chamou a minha atenção para o invulgar espectáculo que nos ofereciam os milhares de chapéus de chuva abertos. Era, de facto, muito interessante e nunca julguei que o conjunto resultasse tão curioso.
Quanto ao jogo, pouco há a dizer. Tanto a nossa equipa como a suíça jogaram abaixo das suas possibilidades. O campo encharcado, com verdadeiros lagos sobre o relvado, não era propício à execução de bom futebol. Quase não tínhamos força para levantar a bola que, pesando no inicio 425 gramas, pesava 675 no dia imediato ao jogo - peseí-a eu!
O resultado deste jogo, apenas memorável pela chuva torrencial que caiu, cifrou-se num empate a duas bolas, marcadas por Rogério e Moreira.
Foi este o último jogo que fiz contra a sempre vigorosa e boa equipa Suíça.»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 164 - 169