Memórias de Peyroteo (24)
(cont.)
«PORTUGAL -SUIÇA
Em jogos internacionais, cinco vezes defrontei a equipa da Suíça: primeiro, em Milão -no dia 1 de Maio de 1938; segundo; em Lausana, a 6 de Novembro de 1938; terceiro, em Lisboa, a 2 de Janeiro de 1942; quarto, em Basileia, no dia 21 de Maio de 1945 e o quinto jogo, novamente em Lisboa, a 5 de Janeiro de 1947.
Tive a sorte e a ventura de visitar a Suíça três vezes, na primeira das quais atravessei, de Norte para Sul, esse país de beleza incomparável, cuja extensão territorial, observada num mapa, se esconde sob a palma da mão de uma criança. Sendo dos mais pequenos países da Europa, a Suíça oferece-nos os mais ricos e deslumbrantes espectáculos de beleza que podemos imaginar. Os tapetes verdejantes dos seus campos, em contraste com a alvura imaculada do gelo que cobre os píncaros dos montes altíssimos - erguidos majestosamente como dedos de gigantes apontando o céu, as águas tranquilas dos seus lagos onde se espelham as cristãs das montanhas-, tudo nos encanta, deslumbra, seduz e nos transporta a um país de sonho!
Mas não se julgue que, por ser pequenina a Suíça, não se fazem, dentro dela, grandes e encantadoras viagens, que jamais se apagarão dá memória de quem as fizer tal como sucede comigo. Ver um lago da Suíça, não é ver todos porque não há semelhança entre eles; as paisagens, como as gentes, mudam, são diferentes de cantão para cantão: a maneira de falar, de vestir, os usos e costumes do povo, são tão diferentes quanto curiosos, A afinidade que os une e caracteriza o povo suíço, é apenas uma: gentileza, correcção, disciplina, cortesia e afabilidade para quem os visita! Isto, porém, só é possível, em tão larga escala, porque entre o povo suíço quase não há distinção de classes são todos iguais. Irmanam-se pobres e ricos; a vaidade e o luxo são contrários à educação do povo suíço. Dignificam-se pelo trabalho ordeiro, metódico, disciplinado e pela sobriedade elegante das suas palavras, dos seus gestos e do seu patriótico orgulho.
O suíço, na sua terra, é um “gentleman” para o forasteiro. Modestamente, sem exuberâncias enfatuadas, o suíço mostra a sua terra e abre as portas da sua casa com a maior das naturalidades, mas sabe que, ao fazê-lo, grava no coração do visitante recordações inapagáveis.
Há quem viaje muito e veja pouco, mas também há quem procure fazer o contrário. Nas três vezes que estive na Suíça, vi o que o tempo e as obrigações de futebolista me permitiram. Através das páginas deste livro, o leitor saberá que conheço, embora um tanto superficialmente, quase toda a Europa. Vi muito, conheci muito do bom e do mau que há no estrangeiro, mas se quiser fazer comparações, não há paralelo a estabelecer: a Suíça vence e convence em todos os pormenores! Por isso, quando as circunstâncias da minha vida permitirem uma viagem de recreio, voltarei á Suíça - o país que me encantou e prendeu para sempre.
E a vós - jovens internacionais portugueses - recomendo-lhes que, quando tiverem oportunidade de visitar a Suíça e quando saírem do hotel, abram bem os olhos, respirem fundo e digam como eu: Deus abençoe a Suíça para que aos homens de todo o Mundo não falte, em realidade, a essência das histórias de fadas e terras encantadas que lhes contaram quando eram pequeninos.
O jogo em Frankfurt, contra a Alemanha, foi a um domingo e, na 3.a feira seguinte, partimos a caminho da Itália, a fim de, em Milão, defrontarmos o grupo helvético. Chegámos ao Lago de Como na noite de 3,a feira, esperando-nos, na estação do caminho de ferro, apenas um empregado do hotel para onde íamos, o qual nos ofereceu, como transporte, uma pequena camioneta tipo 1900…
A equipa nacional descansou durante três dias. Nada se passou digno de registo, a não ser um magnífico passeio de barco, de uma ponta á outra do “Laco di Como”, cuja beleza me impressionou verdadeiramente (paredes meias com a Suíça) e tanto assim é que não resisti á tentação de, com Cândido de Oliveira e Mourão, fazer outras passeatas no lago, servindo-me de barcos a motor que ali se alugavam,
Lembro-me de que, primeiro Filipe Pereira - bom camarada que acompanhou como “mirone” a nossa equipa e, depois, Cândido de Oliveira, gastando apenas 40 liras cada um, deram um belo passeio de avioneta por cima do Lago. Quis imitá-los (nunca perco o ensejo de ver e admirar o que é belo) mas o seleccionador negou-me autorização por recear um “desastre” que, evidentemente, a verificar-se, o colocaria em muito maus lençóis…
Do Lago de Como seguimos para Milão onde chegámos na 6.* feira, dia 29 de Abril de 1948.
Numa das paredes da entrada do hotel, em Milão, estava afixado um grande cartaz anunciando um espectáculo de ópera no mundialmente conhecido “Scala” de Milão. Ora, como eu já planeara visitar aquele teatro, pensei logo em ir, nessa noite, á ópera e, assim, depois do pequeno treino que efectuámos, falei com Cândido de Oliveira, para conseguir dele a indispensável autorização, não só para mim como para o Espírito Santo e o massagista Dionísio Hipólito, que, infelizmente, a morte já roubou ao nosso convívio. O seleccionador não via inconveniente e estava, até, interessado em ir à ópera, mas pôs como condição que teria de ir toda a equipa, prometendo que, ao jantar, consultaria a rapaziada. Desde logo se me afigurou comprometida a minha vontade, mas lutaria por ela secundado pelo Guilherme e pelo Dionísio, e ainda escudado no interesse de Mestre Cândido. Assim, durante a tarde, o “quarteto” fez “torcida” junto dos outros camaradas da equipa no sentido de os convencer a acompanhar-nos ao teatro, mas cedo verifiquei que a ideia não tinha a menor possibilidade de êxito, porque um “malfadado” componente da equipa, ao regressar do treino, viu que num cinema se exibia o filme “FURACÃO”, com a esbelta Dorothy Lamourir a O tal “malfadado” deu o alarme e a maioria dos rapazes queria… o cinema, mas, como prometera, o seleccionador pôs, durante o jantar, as duas hipóteses: ou “Scala” ou o “Furacão”, lembrando, no entanto, que o filme era uma película vulgar, já exibida em Lisboa, ao passo que a um espectáculo de Ópera no “Scala” de Milão talvez jamais nenhum dos componentes da equipa viesse a ter oportunidade de assistir. Além disso, vale” ria a pena, quanto mais não fosse, para ver o “ambiente” e o célebre teatro por dentro, em dia de espectáculo. Infelizmente, nada conseguiu
e lá fomos todos para o cinema, onde eu dormi como um justo, porque já tinha visto o filme em Lisboa e, francamente, não merecia ser visto duas vezes…
Mas eu não desisti de ver, por dentro, o famoso “Scala”; não seria em noite de espectáculo, mas teria de ser noutra ocasião. E foi no próprio dia do jogo contra a Suíça!
Como sempre, em dia de jogo, a rapaziada almoçou cedo e, logo a seguir, sem que ninguém soubesse dos meus planos, à excepção de Cândido de Oliveira, sorrateiramente saí do hotel, acompanhado pelo Dionísio e o Espírito Santo e por um amável funcionário do Consulado de Portugal em Milão, e lá fomos, a 100 à hora, direitinhos ao “Scala”. Tivemos sorte porque o empregado do teatro, informado pelo nosso “diplomata” acerca da “personalidade” dos visitantes, prontificou-se, gentilmente, a mostrar-nos os interiores do teatro, levando a sua amabilidade ao ponto de fazer tantas quantas mutações de luz se fazem no decorrer do espectáculo e nos intervalos! Pôs em funcionamento os elevadores do interior do palco, fez subir e descer alguns cenários, mostrou-nos os camarins normalmente ocupados por cantores célebres como Gigli, Caniglia, Bechi e tantos outros, enfim, vimos tudo! Ficámos a fazer uma ideia do que seria o “Scala de Milão” em noite de ópera, e só não assistimos ao espectáculo porque a maioria dos componentes da equipa preferiu ir ver o “Furacão”… Que pena o vento - do filme - não ter chegado à plateia!…
E para terminar o que lhes conto sobre a nossa visita ao “Scala de Milão”, quero dizer-lhes que tive o prazer de me Sentar na mesma cadeira que já havia sido ocupada pelos grandes senhores da Itália - no camarote de Honra!
De automóvel voltámos ao Hotel, trazendo connosco a sensação de um grande desejo satisfeito; valeu a pena a luta que travamos e Cândido de Oliveira soube compreender-nos. Obrigado ao Seleccionador e amigo.
Poucas horas depois a equipa nacional entraria no rectângulo para defrontar a Suíça em jogo a contar para o Campeonato do Mundo. No centro do ataque português estaria eu ou Espírito Santo? De positivo, nada se sabia mas, agora, estava convencido de que seria eu porque conhecia bem a opinião do seleccionador: equipa que não perde e joga bem, não se deve modificar. Além disso, Mestre Cândido aproveitou todas as ocasiões para, em conversa, me dar ensinamentos sobre a táctica a adoptar, e muitas vezes se referiu à extraordinária classe do defesa Minelli, na sua dureza, etc., etc.
Foi, talvez, duas horas antes do jogo que o seleccionador me disse que jogaria contra a Suíça, notícia que, aliás, recebi com toda a calma, possivelmente por já a esperar… Ao contrário do que sucedeu em Frankfurt, o facto de ir jogar contra a Suíça não me perturbou.
Sentia-me com forças suficientes para tomar parte na luta e só desejava que chegasse o momento para o demonstrar, É evidente que a responsabilidade do jogo que a nossa equipa ia disputar, causava-me apreensões, mas o caso para mim não tomou um aspecto quase dramático como sucedeu no dia da primeira internacionalização.
O grande Minelli que faria? Lutaria por vencê-lo! Estava naqueles dias em que vemos tudo pelo melhor, com optimismo e boa disposição.
Jogámos e no fim dos 90 minutos verificou-se a derrota da equipa portuguesa: 2-1.
O árbitro italiano F. MATTEA prejudicou-nos - ia a escrever roubou-nos! - escandalosamente! Foi tão velhaco e tão “suíço” que no final do encontro um seu compatriota lhe atirou uma garrafa quando se dirigia para a cabine. Por pouco não lhe atingiu a cabeça; caiu-lhe aos pés e desfez-se em cacos. Assobiaram-no, chamaram-lhe quantos nomes feios sabiam. Poucas vezes assisti a tão ruidosas manifestações de antipatia por um árbitro em jogos internacionais, com a agravante de este ser insultado pelos seus próprios com' patriotas italianos, após uma arbitragem parcial, imprópria de um homem que é chamado a dirigir uma competição desportiva internacional!
Na grande área, cargas fora da lei, encontrões, rasteiras, tudo passou sem castigo! Minelli era duro, violento mesmo, embora bom jogador. Fez tudo quanto quis. Uma vez, a bola esteve dentro da baliza suíça; o ferro que segura a rede devolveu-a para o campo e o árbitro F. Mattea, fez vista grossa! E se ordenou a marcação de uma grande penalidade - desperdiçada, infelizmente, por João Cruz - foi porque a irregularidade cometida era tão flagrante que outro remédio não teve senão apitar… Era tão grande a excitação do público italiano e dos jogadores portugueses que se o árbitro não marcasse aquele “penalty” corria o risco de ser linchado! '
Foi um péssimo árbitro o sr. F. Mattea. Não foi a equipa suíça que nos venceu, mas sim o árbitro é que nos fez perder este jogo internacional; o senhor Mattea foi o décimo segundo e o melhor jogador suíço.
Se alguma vez, nos 16 anos da minha vida desportiva, senti vontade de bater em alguém, foi ao árbitro italiano F. Mattea. No final do encontro olhei-o provocadoramente e ele não reagiu porque se o fizesse… talvez lhe tivesse deitado as mãos ao pescoço-passe o exagero…
A equipa nacional portuguesa merecia ganhar o jogo porque, mesmo contra todas as dificuldades que o árbitro nos criou, jogámos muito melhor do que o nosso adversário; fizemos um golo que o árbitro não validou; fui brutalmente carregado dentro da grande área; tanto eu como os meus companheiros da Unha atacante portuguesa, fomos agarrados, rasteirados, etc., etc., e o Sr. F. Mattea a tudo assistiu impassível! Não seria mal intencionado o Sr. Mattea? Ter-se-ia descontrolado por qualquer motivo? Mas se assim tivesse acontecido, teria sido mau árbitro, cometendo erros, em suma, mau para ambas as equipas, não é isso verdade? Não sei o que lhe aconteceu, mas sei que nos tirou uma vitória merecida, certa, irrefutável. Enfim, o que lá vai, lá vai, e nada ganho em carpir mágoas agora!
Quanto à minha actuação, pareceu-me que foi, pelo menos, aceitável. Marquei o meu primeiro golo em jogos internacionais, lutei quanto as forças permitiram, falhei um golo quase certo e, no final do encontro, Cândido de Oliveira, Gustavo Teixeira, Espírito Santo, Mourão, Soeiro e outros companheiros, felicitaram-me. Parece, pois, que as coisas não me correram mal de todo, e a justificar esta minha opinião, transcrevo o que disse um dos maiores técnicos do futebol europeu, que durante largos anos foi seleccionador nacional italiano -
Victtorio Pozzo, à revista “Stadium”, de 4 de Maio de 1938, n.° 325, Ano VII:
“Portugal fez uma grande partida de futebol, do melhor futebol. Não merecia perder, de forma alguma. O resultado é injusto. Os portugueses meteram duas bolas autênticas. Apreciei a classe do médio-centro, interior esquerdo e do avançado-centro. Na Suíça só houve defesa. Ataque não existiu.”
Lança Moreira, jornalista e crítico desportivo de reconhecidos méritos, escreveu, na Revista “Stadium”, de que foi enviado especial a Frankfurt e Milão:
“Jantou-se meia hora depois da chegada ao Hotel. Tristeza e rostos macerados. João Cruz, desde o balneário, chora perdidamente, como uma criança. Os companheiros querem animá-lo, mas estão quase como ele. No fim do jantar, o Capitão Maia de Loureiro falou aos rapazes: Todos os factores podiam ser culpados da nossa derrota, menos eles, jogadores. Levantaram-se vivas frenéticos a Portugal.
“Fala a seguir Dionísio Hipólito. Entoa-se a “Portuguesa” ouvida com respeito por todos os comensais que estão noutras mesas. No final, não há um único português que não chore. Vaiadas, Soeiro, Cruz, Peyroteo, soluçam convulsivamente. O momento é único, emocionante, grandioso, inesquecível. A bandeira de ' Portugal vem à nossa presença e é beijada! É a Pátria, é a terra querida, é Portugal.
“Perdemos mas não nos convencemos. Bravo, rapazes! Um “hurrah”, saido do fundo da alma, pelos jogadores de Portugal!!! Bem merecem do público o mais formidável dos acolhimentos!”
Depois do jogo, a caminho do hotel, as manifestações de simpatia que o povo italiano nos dirigiu foram extraordinárias. Sobre este pormenor, Lança Moreira escreveu:
“Após o jogo, o público tributou uma colossal ovação aos jogadores, reconhecendo o seu esforço e infelicidade, vitoriando-os freneticamente, erguendo vivas a Portugal e à Itália, com “abaixos” a Mattea. A emoção foi indizível. Deviam ser mais de cinco mil pessoas! A porta do hotel juntou-se ainda muita gente vitoriando Portugal!!!”
Sim, foi verdade. Lança Moreira não exagerou. Desde o campo até ao hotel, ao longo das ruas, o grito do povo italiano era este: Portogalo, Portogalo! Viva Portogalo! Gritos, vivas e palmas ecoavam por todas as ruas.
Obrigado, desportistas de Milão. Seria injusto se através das páginas deste livro não lhes enviasse um abraço de reconhecimento.
Quando chegámos a Milão, só dois ou três dirigentes do futebol italiano nos esperavam na Estação Central dos caminhos de ferro, mas após o desafio, muitos milhares de pessoas nos acarinharam e vitoriaram.
Perdemos o jogo de futebol, mas conquistámos o coração do bom povo milanês, o que constituiu uma grande vitória para nós jogadores e para Portugal!
Os desportistas portugueses - os que ficaram na nossa terra - aceitaram a derrota da nossa equipa e compreenderam-na, felizmente. Por isso, ao chegarmos a Lisboa, assistimos à mais extraordinária e grandiosa manifestação. Na gare da Estação do Rossio, em todos os salões, na rua, a massa de povo era compacta. Sem saber como, senti-me agarrado e, aos ombros de entusiastas, desci as escadas da Estação; tanto puxaram que me rasgaram o casaco e um tacão do sapato… desapareceu! Vi-o, mais tarde, na mão de um entusiasta que me disse guardá-lo como recordação…
Quando cheguei ao último degrau da escada, pretextando estar magoado, consegui pôr os pés no chão; fugi, meti-me no elevador, e fui outra vez para cima. Estava tonto e cansado de tantas “palmadas amigas” que me deram nas costas, nos ombros e na cabeça, mas de nada me valeu a fuga, porque outro grupo de sportinguistas, vendo-me à saída do elevador, agarrou-me e, novamente aos ombros de amigos, desci outra vez as escadas e, assim, fui até à sede do Sporting, na Praça dos Restauradores. À porta do Clube pedi-lhes que me deixassem ir cumprimentar os dirigentes do Sporting, mas os camaradas preferiram levar-me, daquele modo, à presença da Direcção!
Estive uns minutos refugiado no gabinete da Direcção, esperando que os ânimos acalmassem um pouco mas, na Praça dos Restauradores, os vivas a Portugal, ao Sporting e a Peyroteo não cessavam ; tive que aparecer à janela para agradecer à rapaziada a manifestação de simpatia que me dispensavam.
Ao contrário do que se possa supor, nunca me senti tão pequeno! As palmas e os vivas não me pertenciam exclusivamente, mas sim à Selecção Portuguesa de Futebol de que fiz parte e à qual, como todos os outros, dei o melhor do meu esforço para honrar a camisola que envergara. Nunca me envaideci e, talvez por isso mesmo, consegui ir um pouco mais longe do que tantos outros rapazes, porventura com melhores qualidades futebolísticas do que eu mas que em breve se julgam ídolos, transbordam de vaidade e não passam de estrelas de segunda grandeza no firmamento do desporto nacional. É pena,
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realmente, que muitos se tenham perdido de braço dado com a vaidade, ficando ao princípio da estrada que os conduziria à glória - embora efémera - do desporto.
Para início da nova época, a Associação de Futebol de Lisboa organizou o seu Torneio de Preparação. A minha equipa - a do Sporting, bem entendido - entra em função num jogo contra o Benfica, no dia 11 de Setembro de 1938, o qual terminou com empate a três bolas; a 25 do mesmo mês, defrontámos o Belenenses, nas Salésias, cujo resultado foi 6-3 favorável aos “leões”. O Sporting ganhou o Torneio. Eu marquei cinco golos nestes dois jogos, Sendo um ao Benfica e quatro ao Belenenses. Classifiquei-me como o melhor marcador do Torneio e cometi a proeza de fazer quatro golos num só jogo - contra o Belenenses. Para começo de época não era mau, mas estes factos viriam a ter influência na consolidação do meu lugar como avançado-centro da Selecção Nacional.
Acabado o Torneio de Preparação, começámos a disputar, a 2 de Novembro de 1938, o Campeonato de Lisboa, interrompido, depois de quatro jogos, a fim de a equipa nacional seguir para a Suíça, na manhã do dia 31 de Outubro.
Chegámos a Paris na 3.ª feira cerca da meia noite; partimos dali na 4.a feira de manhã e chegámos a Lausana na 5.a feira, salvo erro, após uma viagem magnífica.
Desta vez, quando saímos de Lisboa, já sabia que jogaria no posto de avançado-centro da equipa portuguesa; o lugar era já meu e, portanto, jogador efectivo do grupo nacional de futebol!
Por temperamento, o povo suíço não é expansivo. O futebol Interessa-o, gosta até muito deste desporto, mas as manifestações não são de molde a entusiasmar-nos. Por isso, chegámos a Lausana e ficámos com a impressão de que ninguém sabia da realização do encontro.
A cidade vivia numa calma impressionante até à hora da saída dos empregos; depois, o trânsito aumentava e pelas ruas circulavam centenas de bicicletas montadas por homens e mulheres, raparigas e rapazes. Em grupos, pedalando serena e ordeiramente, iam a caminho do almoço.
Admirável povo este! Sempre que nós, transeuntes ignorados, tínhamos necessidade de qualquer informação ou esclarecimento, atendiam-nos com tanta amabilidade e mostravam-se de tal maneira atenciosos e prestáveis, que nos sentíamos confundidos, embaraçados!!
No Hotel aparecia-nos, de quando em vez, um jornalista. Impressionantemente calmo, dirigia-se, em primeiro lugar, a um nosso dirigente federativo ou ao seleccionador, solicitando-lhe autorização para nos falar. Feitas as apresentações, perguntava-nos se gostávamos da Suíça, mormente da Cidade de Lausana, indagava, com visível interesse, se estávamos bem instalados no Hotel, se a comida nos agradava; indicava-nos os locais mais aprazíveis da Suíça, recomendava-nos uma visita a este ou àquele local e, por fim, quase a medo - o suíço é educado e, portanto, receia a indiscrição - falava um pouco de futebol: “Bem dispostos para o jogo? Óptimo, óptimo. Eu lá estarei para os aplaudir!” - Oferecia os seus préstimos e, com a mesma leveza de palavras e gestos, delicado e correcto, abandonava o Hotel.
Por vezes cheguei a duvidar que os jornalistas soubessem que estávamos ali para jogar futebol; não nos confundiriam com turistas? Perguntar como alinharia a equipa portuguesa, vaticínios sobre o resultado, quais os jogadores mais em evidência, o que pensávamos sobre a equipa e o futebol do seu País? Não! O suíço teme fazer perguntas sobre assuntos em que se não quer ou não deve falar. O jornalista, visitando-nos, marcava a presença, era portador de uma mensagem de boas-vindas, e não como alguns jornalistas que conheço que levam o descaramento ao ponto de perguntarem coisas sobre os planos tácticos da nossa equipa e quais os nossos melhores jogadores…
O ambiente de calma e tranquilidade era sempre o mesmo e até nós, os portugueses - homens de falas altas, de gestos largos e de palmadinhas nas costas dos amigos! - nos sentíamos contagiados. Evitávamos falar muito alto e “suspendemos os gestos”, porque os suíços que presenciavam tais manifestações de alegria e camaradagem “à portuguesa”, dificilmente compreenderiam, ou aceitariam, que tudo aquilo era “reinação”. O curioso é que, sem darmos por isso, as “chulipas no fófó”, os “cachações” e â algazarra nas ruas, acabaram-se como por encanto! A rapaziada adaptou-se com relativa facilidade, o que nos indica que o portuguesinho irreverente, de sangue na guelra, pode modificar-se, embora seja difícil fazê-lo perder, de todo, o seu temperamento irrequieto.
Nos dias que precederem o encontro, a maioria dos componentes da caravana portuguesa pouco falou de futebol. Na verdade o que nos levou a Lausana foi o futebol e a responsabilidade e dificuldade do encontro estavam bem dentro do nosso espírito, de forma que, falar-se muito acerca do caso, era reavivar apreensões e aumentar o nervosismo. Por outro lado, a encantadora cidade de Lausana possuía todos os atractivos capazes de nos distrair: a beleza dos seus prédios, o verde dos campos, a imponência das montanhas que a
rodeiam, a ordem, o asseio das ruas, educação e cortesia do seu povo, tudo nos encanta.
Na véspera do desafio e logo a seguir ao pequeno almoço, fui procurado, no Hotel, por um homem bastante novo, que pediu para me sentar à sua frente. Tinha, nas mãos, um bloco de papel e um lápis. Sentámo-nos, olhou para mim duas ou três vezes, rabiscou no papel e, depois, levantou-se, apertou-me fortemente a mão e disse: - “Obrrigado sinhôrre Peyrrôteo”. Retirou-se. À porta, antes de sair, voltou-se, fez uma vénia e repetiu: - “Obrrigado”.
Li algures, que Henry Ford dizia ter-se habituado a conhecer o carácter, a educação e valor dos pretendentes a seus empregados, através do aperto de mão que trocavam no dia da apresentação! Este rapaz teria, decerto, conseguido emprego nas casas “Ford”!
Na manhã do dia do desafio, o jovem suíço voltou ao Hotel para me oferecer a interessantíssima caricatura que reproduzo.
Que habilidoso rapaz!
E com mais esta bela recordação da Suíça - obra de um seu filho, artista engenhoso - cheguei ao local onde, dentro de uma hora e meia, se travaria renhida luta desportiva.
Nas ruas de acesso ao campo, cá fora e junto do rectângulo, nada indicava que ali se realizaria um jogo internacional de futebol! As bilheteiras abertas - um polícia e mais cinco ou seis pessoas! Receei que nos tivéssemos enganado no campo!!! Como admitir tanta indiferença, tanta frieza, uma hora antes do jogo? Desgostosos, entrámos nas cabinas para nos equiparmos. Perdemos todo o contacto com o exterior e às catorze horas e cinquenta minutos entrámos no rectângulo. Surpresa geral! Tudo cheio! Não havia um lugar vago! Vinte e tal mil pessoas emolduravam o rectângulo! Mais uma prova eloquente da calma, da ordem que reina nesta maravilhosa Suíça.
E depois de tudo isto não é natural que me enamorasse da Suíça?
A assistência acolheu-nos com simpatia mas… palmas sem calor, embora sinceras. Manifestação calorosa, com palmas de estalar, gritos e vivas a Portugal nos tributou a meia dúzia de portugueses, estudantes na Suíça, que vieram assistir ao prélio. A Lausana deslocaram-se esses rapazes portugueses para nos dizerem da saudade da Pátria, para nos afirmarem que Portugal está em todo o Mundo e que os seus filhos se unem sempre que a bandeira das quinas surge num mastro! Empunhavam pequeninas bandeiras verde e encarnado, agitavam-nas freneticamente e, a toda a força dos seus pulmões, revigorados pelo ar puro das montanhas suíças, gritavam Portugal! Portugal! Meia dúzia de portugueses faziam mais barulho do que quase trinta mil suíços!
O jogo começou e acabou sem história. Perdemos por 1-0. Poderíamos ter ganho? Sim, talvez! Merecíamos a vitória? Não! Os suíços foram-nos superiores ; jogaram para merecer a vitória pela diferença mínima e conseguiram-na com justiça. Nós jogámos muito menos do que em Milão, quando seria de esperar precisamente o contrário. O futebol é um jogo e, como tal, umas vezes se joga bem e outras mal; umas vezes se ganha e outras se perde… Mas não fizemos má figura. Perdemos o jogo mas ganhámos, mais uma vez, em brio, em coragem, correcção e lealdade. Fomos verdadeiramente desportistas, e isso é o que mais interessa, afinal. Orgulho-me de ter pertencido a equipas que sempre - mas sempre, acentue-se - levantaram bem alto a bandeira de Portugal. Deslizes de um ou de outro sempre os houve e haverá. Mas o conjunto foi sempre digno de si, próprio e da Nação. Ninguém, com justiça, o poderá contestar ou negar, felizmente.
Depois do encontro, o habitual banquete de confraternização, no decorrer do qual nos “esprememos” a falar um francês-mímica… Os dirigentes suíços ofereceram-nos - sempre gentis - umas lembranças e… até à vista “mon cher amis”!…
De facto, voltámos a ver-nos e a medir forças, em Lisboa, no dia 2 de Janeiro de 1942, ou seja, três anos e dois meses mais tarde.
Não conto, evidentemente, com o III PortugaJ-Suíça disputado em Lisboa a 12 de Fevereiro de 1939, no qual a-nossa equipa foi derrotada por 4-2; não tomei parte nesse jogo, tendo alinhado no posto de avançado-centro o meu amigo Guilherme Espírito Santo.
O IV Portugal - Suíça a que me vinha referindo - 2 de Janeiro de 1942.- foi um grande jogo! Portugal venceu, merecidamente, por 3-0. A nossa equipa mereceu ganhar e a vitória teve tanto maior valor quanto é certo que os suíços não jogaram mal. Talvez um pouco menos do que sabiam e podiam, mas sem fazerem má exibição.
Foi a minha primeira vitória em desafios internacionais, guardando dela grata recordação porque batemos uma equipa muito considerada nos meios futebolísticos europeus e que vinha obtendo óptimos resultados em jogos com equipas de países onde o futebol atingira altíssima craveira.
Quanto ao meu trabalho no conjunto nacional, não foi ele de molde a impressionar favoravelmente o público que encheu o campo das Salésias - e parte da crítica da especialidade… Dos jogadores portugueses, fui o que menos vezes esteve em contacto com a bola e isto porque uma arreliadora lesão no pé esquerdo - contraída num jogo de clube que antecedeu o encontro - quase me ia obrigando a não alinhar, tanto assim que, antes de entrar no rectângulo, o grande massagista Manuel Marques fez, no meu pé doente, dezoito infiltrações de anestésico e, seguidamente, aplicou-me uma ligadura apertada, de modo que eu quase não sentia o pé, sendo isso, aliás, o que se pretendia conseguir. E o seleccionador nacional, Cândido de Oliveira, sabia do meu estado e, por isso, me perguntou se me julgava capaz de aguentar os noventa minutos de jogo.
Foi mais ou menos nestes termos que o seleccionador expôs à equipa o seu ponto de vista:
- “Os dois meias pontas - além da tarefa que lhes cabe e de que já falámos - vão tentar, logo nos primeiros minutos, preparar uma boa passagem de bola ao Fernando, de modo que ele possa atirar ao golo rapidamente, sem preparação e com toda a força possível, mesmo de longe. Conseguindo-se esta jogada e atendendo à fama que tem de bom rematador, a defesa suíça concentrará a melhor atenção no nosso avançado-centro e os interiores actuarão com maior liberdade. Ora, como são dois bons rematadores (Pinga e Alberto Gomes) poderão complicar a vida à defesa suíça… - atirando à baliza e lançando os extremos…
Assim foi; logo nos primeiros minutos disparei um grande tiro à baliza de Ballabio; a bola seguiu a meia altura para o lado esquerdo do guarda-redes, que executou uma defesa espectacular. Creio ter sido um dos meus melhores remates de sempre e deu-me ensejo de ver, também, uma das melhores, mais difíceis e bonitas defesas de quantos guarda-redes vi actuar! A bola foi socada e… marcou-se um pontapé de Canto. Não foi preciso mais nada para os defesas Minelli e Lehmann já meus conhecidos - não me largarem durante os noventa minutos de jogo. Confirmou-se, portanto, a previsão do seleccionador e deu o resultado que se esperava: a defesa suíça preocupava-se comigo e eu movimentava-me de forma a “chamá-los”… Como resultado desta manobra táctica, Mourão marcou dois golos, Alberto Gomes outro… e o público não se impressionou com o meu trabalho!
Pela força do hábito, o público atribuía-me a obrigação, o dever inalienável de marcar golos em todos os jogos! Se jogava pelo Sporting, eram os adeptos do Clube; se pela Selecção Nacional, era quase todo o público. Este dever, esta obrigação sem apelo, era-me atribuída, ao que parece, em regime de exclusividade, pois a nenhum outro jogador avançado se exigia tanto! Qualquer jogava bem sem meter golos, mas o Peyroteo, esse, tinha de os meter! Às vezes, até, fazia dois golos e dizia-se: “Peyroteo “apenas” marcou dois golos e… nada mais fez”! - Como se isso fosse pouco…
O futebol é um jogo de conjunto e, por isso, há que sacrificar, às vezes, uns em proveito de outros para se atingir a finalidade, o bom rendimento da equipa de que todos fazemos parte. De outra vez, no Portugal - Espanha dos 4-1, passou-se quase o mesmo: fui sacrificado para bem da turma nacional, não marquei golos e grande parte do público não gostou do meu trabalho!… Na linguagem dos amadores da pesca, o Peyroteo era o isco! Contudo, será bom não esquecer que nem todo o “isco” serve aos pescadores nem aos peixes… Bem diz o nosso povo: - “num lado se põe o ramo e noutro se bebe o vinho!…” Referido a traços largos, assim foi o IV Portugal - Suíça.
Os rapazes fazem, às vezes, coisas do arco da velha: ir para um jogo internacional com dezoito picadas de anestésico - “Midalgan-Midi” (?) - num pé, já é gostar muito de jogar futebol! Mesmo assim, quantas saudades tenho desses bons tempos de rapaz!
Numa linda. manhã de Maio de 1945, o avião rolou na pista do aeroporto de Lisboa e lançou-se no espaço, transportando a equipa nacional de futebol. Uma hora e cinquenta minutos depois chegámos a Madrid, onde almoçámos - no aeroporto - e donde partimos com rumo a Barcelona; aqui, uma hora para reabastecimento do aparelho e novamente no ar, a caminho de Genebra, onde aterrámos ao fim da tarde.
No dia seguinte, viajámos de comboio entre Genebra e Basileia. Parámos em Neuchatel, cuja moderníssima e encantadora praia artificial nos deixou extasiados. Tomámos um pouco demorado mas esplêndido banho, almoçámos à sombra de lindas e frondosas árvores, e seguimos para Basileia.
Ah! A Suíça!!! Já tantos homens ilustres, poetas, escritores, jornalistas, diplomatas, cientistas, etc., se referiram elogiosamente à Suíça, que ela dispensa a modéstia das minhas palavras, o apreço em que a tenho, a paixão que me desperta. Não faço reclame à espera de me ser oferecido um passeio a essas terras de maravilha e sonho. Faço-o, apenas, para que o leitor cujas disponibilidades financeiras o permitam, não deixe, algum dia, de visitar esse País encantador! O turista, para ficar maravilhado, não tem de escolher esta ou aquela cidade, porque a Suíça, de lés-a-lés, quilómetro a quilómetro, oferece-lhe paisagens de beleza surpreendente. No Inverno ou no Verão? É indiferente, porque a Suíça é sempre linda em qualquer estação do ano. Vá à Suíça, leitor amigo, e acredite, que não perderá o seu tempo nem gastará inutilmente o seu dinheiro !»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 147 - 163