Memórias de Peyroteo (18)
(cont.)
«VII - PORTUGAL - FRANÇA
Portugal 2 - França 1
(Golos de Peyroteo e Araújo)
No Estádio Nacional, em Lisboa, no dia 14 de Abril de 1946, a Selecção Nacional Portuguesa bateu a magnífica equipa representativa da França por 2-1.
Ora aqui temos um jogo internacional em que a equipa portuguesa ganhou um jogo que, quando muito, merecia empatar! Assim mesmo: um empate seria ainda resultado lisonjeiro para os portugueses, porque a equipa da França foi-nos superior em todos os pormenores do jogo. Simplesmente, a defesa da equipa nacional, pela sua organização, entreajuda, espírito de luta, saber e inteligência, não consentiu que os gauleses traduzissem em golos a superioridade que esteve patente em quase todo o encontro.
Na primeira parte o jogo da equipa representativa de Portugal foi incontestavelmente mau, inferior; na segunda - vamos com Deus! - as coisas correram um tanto melhor para nós, sem que isso chegasse para justificar a vitória…
Marquei um golo e o Araújo fez outro. Ganhámos por 2-1, resultado que na história do futebol português ficará assinalado a “letras gordas”. Ao fim e ao cabo tudo esquecerá, excepto os “números” finais do encontro.
Agora vou dar a palavra à crítica (?), ou melhor, a um sabichão que escreve - ou escrevia - nos jornais desportivos.
Doutamente, superiormente, estupidamente (creio que perdi a noção dos adjectivos!), o espertalhão escreveu:
“No centro da linha tivemos um Peyroteo estático, sem rapidez. Fez um tento. Não é suficiente para acreditar um jogador. Esteve muito marcado! Não é razão que explique o seu inferior rendimento. Se um jogador de futebol só joga bem quando está livre de adversários - então toda a gente sabe jogar futebol.”
E um pouco mais adiante:
“A ausência de Espírito Santo - um avançado-centro de quem ainda há poucos dias Feliciano nos disse ser o único que verdadeiramente teme, devido ao seu domínio de bola, ao imprevisto da jogada e ao movimento - pesou bastante no rendimento do ataque. Ele teria sido, como extremo direito (o sublinhado é meu) um portador de avanços. Porque Rogério também é um portador de ataque e no domingo esteve quase todo o tempo à espera que o interior ou o avançado-centro lhe dessem um passe…”
Depois, mais abaixo, o articulista acusa os atacantes da equipa das quinas de não passarem a bola ao Rogério, por este ser do… Benfica! Quaresma, esse então, leva em cheio. Mas há mais e, talvez, melhor, como veremos:
“Peyroteo esteve uma hora e oito minutos sem atirar uma bola à baliza - apesar de ser avançado-centro…
Se analisarmos as afirmações do pseudo-técnico-jornalista, concluiremos facilmente que a minha inclusão na equipa nacional foi gratuita! O seleccionador, Dr. Tavares da Silva, quis fazer-me esse favor? Pronto, aqui fica o meu agradecimento ao meu amigo Dr. Tavares da Silva. Não sabia que assim era, Doutor? Também eu não; mas adiante…
A seguir, o articulista acusa-me de falta de “dribling”, de não saber fintar, de falta de rapidez, enfim, classificou-me de autêntico aselha! - Lamenta que Espírito Santo - o único jogador que Feliciano temia! - não tivesse jogado a… extremo direito! Valha-nos Deus que bem pode!!! É caso para perguntar: e porque não o indicava para avançado-centro? Pois não é verdade que o Guilherme possuía todas as qualidades necessárias para ocupar o eixo do ataque português? Não, senhor pseudo-técnico! O senhor acusou-me, e também ao Quaresma, de não darmos jogo ao Rogério só por eu ser do Sporting, o Quaresma do Belenenses e o Rogério do Benfica.
Como saber esperar é uma virtude, agora acuso-o eu de ser mau português, um possível mau seleccionador e jornalista - se não incompetente, pelo menos parcial. Ouça-me: Colocar o Espírito Santo à extrema-direita quando ele no centro do ataque é que fazia falta, só lembraria ao Diabo, e a si! Vê-se, portanto, que o Rafael também beneficiou dos favores do Seleccionador, pois não é verdade que o tal sabichão incluiria o E. Santo a extremo-direito em vez do jogador “belenense”? Admitamos que o “benfíquista” jogaria na extrema-direita e que eu, considerado azelha de primeira categoria, não ocuparia o eixo do ataque. Pergunto: quem jogaria a avançado-centro? A resposta é fácil: dou-a eu por ele: nesse tempo havia muito por onde escolher, tal como acontece ainda hoje. Esse facto é mesmo uma das melhores facetas do futebol português…
Não, senhor jornalista; só pelo desejo e prazer de incluir o Guilherme na Selecção Nacional, dar-lhe o lugar de extremo-direito, isso não. Por maldade, o senhor baralhou as mãos com os pés e, ao fim, não sabia onde tinha as mãos e os pés ou, pelo menos, a mão direita para escrever honestamente! Tenha paciência; quem diz o que quer, ouve o que não quer, e isso acontece, muitas vezes, aos sabichões destas andanças da bola! Oiça? -admitindo que o Guilherme tivesse jogado a extremo-direito, teria ele, por si só, com “driblings”, fintas e rapidez, sido capaz de levar a nossa equipa a jogar em grande forma? O senhor teria as suas ideias, mas não deveria esquecer, ao formar a linha dianteira da Selecção Nacional, que o interior direito, Araújo, era do F. C. Porto, o médio do mesmo lado, Amaro, dó “Belenenses”… Sendo assim, o Guilherme reclamaria… por falta de passes daqueles seus companheiros!!! Sabe o que o senhor fez, na realidade? Uma trapalhada e nada mais. Se estivesse quieto teria feito melhor figura. Cuidou que se benzia e partiu o nariz. De resto, a culpa não foi sua, mas de quem consentiu que o senhor, um jornalista sem prestígio nem brio, tocasse no brio e prestígio daqueles que, graças a Deus, possuíam essas qualidade, tão necessárias aos bons jornalistas como aos bons desportistas; e bom desportista nada tem que ver com bom jogador de futebol…
Nunca é tarde para agradecer - o que já tenho feito, com sinceridade, neste meu livro -, mas também nunca é tarde para chamar à razão os que, malévola e desonestamente - desportivamente falando, está claro - se excedem e acabam por escrever asneiras.
Voltando, ainda, àquele naco de prosa onde escreveu: “Peyroteo esteve uma hora e oito minutos sem atirar uma bola à baliza - apesar de ser avançado-centro” - não quer admitir que me queixe, também, da falta de boas passagens, capazes de proporcionarem bons remates? Foi para o campo munido de cronómetro para marcar os dois tempos de jogo e as “tolices” do avançado-centro da equipa das quinas, e esqueceu-se, lamentavelmente, de “cronometrar” as asneiras que esteve a pensar… Repare nisto: nenhum dos componentes da linha atacante nem, sequer, do sector médio, eram do Sporting! Apenas Azevedo, na baliza, Cardoso, na defesa e Manuel Marques como massagista - fora do rectângulo! - eram do Sporting…
Como queria o senhor técnico-jornalista que o avançado-centro em “uma hora e oito minutos” atirasse à baliza, se os seus companheiros nas linhas avançada e média não lhe passavam a bola, por serem todos de outro clube que não o Sporting?
Para si, ao que parece, a equipa que jogou este VII Portugal - França, não foi um grupo de homens sérios, mas pura e simplesmente uma equipa de… “quinta coluna”. Mas, acredite, foi só para si. Ninguém de bom senso, de juízo e competente esteve, ou está ainda hoje, do seu lado.
Que se discorde da formação da equipa nacional ou se critique a acção dos jogadores, admite-se, mas a quem se reconheça competência para isso. Vou mais longe: pode um leigo em assuntos de futebol não estar de acordo com o seleccionador, etc., etc., pensando* se que o fará com boa intenção - baseado nos conhecimentos da matéria que julga possuir. Agora, que se discorde do critério ou competência do seleccionador e se menospreze o brio e carácter dos jogadores, quando se sabe que o “crítico” é superiormente incompetente em questões futebolísticas e maldoso, pessoa de má fé, independentemente de mostrar - não só na crónica presente como em tantas outras anteriores-reprováveis tendências clubistas, isso é que já passa das marcas consentidas.
Por isso, a propósito de tais crónicas e de tais jornalistas (?), muitas vezes me disse o senhor José Sezabo;
- “Férnando não ler crónicas dê tipos quê não saberem nada dê “foot-ball”; tipos mal intencionados quererem impressionar dê sinhor para jogar mal contra clubes dê eles. Sinhor pegar jornal e ver assinatura e se não ser dê jornalista quê saber-se dê “foot-ball”, deitar fora jornal.”
E pelo tempo adiante segui os conselhos do meu treinador e amigo, o que me foi altamente proveitoso.
É bom esclarecer, entretanto, que as referências que faço à crónica assinada por um jornalista mal intencionado, não tem o propósito de procurar demonstrar que Espírito Santo não deveria ter ocupado, nesse jogo internacional, o posto de avançado-centro ou, mesmo, o de extremo-direito; por todas as razoes e ainda porque não me restam dúvidas de que, em qualquer deles, o Guilherme serviria bem a equipa. Não se interprete o que escrevi como crítica às reais qualidades de atleta e futebolista que caracterizaram o meu amigo Guilherme Espírito Santo; nem a ele nem aos meus outros companheiros de equipa. Nada disso. Apenas pretendo, com estas considerações, avisar os jovens incautos de que crónicas de tal jaez não tem outra finalidade que não seja a de, por via delas, se falar de alguém que, de outro modo, viveria totalmente ignorado!…
Sobre a campa de Beethoven - um dos maiores compositores musicais desde que o Mundo é Mundo - todas as inscrições eram inúteis e, por isso mesmo, ali se gravou apenas um nome: BEETHOVEN! Toda a gente sabe quem é.
O que teríamos nós de escrever para tornar conhecida a campa deste jornalista desportivo, uma vez que apenas o seu nome o tornaria ignorado? Talvez a transcrição parcial das suas baboseiras acerca do desporto português, especialmente sobre futebol!!!
E pronto. Já basta de perder tempo. Vamos agora analisar, resumidamente, o que foi o VII Portugal - França em futebol.
O jogo teve duas partes distintas: a primeira, nitidamente favorável aos franceses, que foram superiores em todos os aspectos e que só a estoicidade da nossa defesa conseguiu salvar-nos de um desaire; na segunda parte, a nossa equipa entrou a jogar um pouco maís sem, de modo algum, dominar abertamente a equipa da França. No entanto, jogando menos na primeira parte, fizemos um golo por intermédio de Araújo e, quando actuávamos melhor - no princípio da segunda parte - sofremos o golo que ditava o empate. Depois da igualdade a equipa das quinas lutou para desfazer o empate e conseguiu os seus intentos com um “tento” obtido por mim, aproveitando um magnífico passe de Rafael - em conclusão de jogada combinada entre mim e o extremo-direito belenense, no intervalo - tendo em atenção uma pequena deficiência táctica da defesa gaulesa que, após este golo e verificada a desatenção, não mais caiu nela… infelizmente, claro. Este golo deu a vitória à Selecção Nacional Portuguesa e, assim, o resultado final cifrou-se em 2-1.
Ganhámos, é certo, mas a equipa da França era superior à nossa. Tecnicamente fomos inferiores aos nossos adversários - o que tem sucedido quase sempre nos jogos internacionais -”mas saímos vitoriosos do magnifico relvado do Jamor! O futebol é assim: nem sempre ganha a melhor equipa…
Por Portugal jogaram: - Azevedo, Cardoso, Feliciano e Serafim; Amaro e Francisco Ferreira; Rafael, Araújo, Peyroteo, Quaresma e Rogério.»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 129 - 133