Memórias de Peyroteo (17)
(cont.)
«ESPÍRITO SANTO E EU EM PARIS
Guilherme Espírito Santo e eu fomos companheiros inseparáveis. É um rapaz inteligente, de bom carácter, delicado e atencioso, lê muito e procura, sempre que pode, aprender e cultivar-se.
Conhecemo-nos em Luanda e ficámos para sempre amigos, embora a força das circunstâncias nos houvesse colocado, muitas vezes, frente a frente, como adversários no desporto.
Este facto, porém, nunca impediu ou prejudicou a sincera amizade que nos une.
Quando a Selecção Nacional de Futebol foi à Alemanha, viajámos no mesmo compartimento, tivemos lugar à mesma mesa no vagão restaurante e ficámos sempre juntos nos hotéis onde os jogadores portugueses se hospedaram.
A caminho da Alemanha, chegámos a Paris cerca da meia noite. Recolhemos ao Hotel Bayard, na Rue du Conservatoire e, no dia seguinte, de manhã, fomos, a pé, dar um passeio pela grande e maravilhosa cidade.
O Grupo parava aqui e ali, para ver as montras e… os parzinhos que se beijavam, descaradamente, em plena via pública ou nas estações do “Metro”.
Quando deparávamos com tal espectáculo, era um caso sério e as piadas e ditos de espírito fervilhavam - em português está bem de ver, porque se fossem em francês, não haveria jogo na Alemanha! Metade dos componentes da nossa Selecção ficaria no “Governo Civil” de Paris!…
Os parzinhos que estavam aos beijinhos, interrompiam a cena, olhavam-nos sem nos compreender - felizmente! - esboçavam um sorriso - especialmente a garota porque o moço deitava-nos olhares furibundos - e a brincadeira continuava…
Nós… seguíamos em busca de novas sensações!
Para os franceses, aquilo era trivial a todas as horas e em quase todos os locais, por isso nem sequer olhavam para os amorosos. Era o caso: agora és tu, logo serei eu.
Os portugueses miravam, intrigados, porque, geralmente, só se via metade de cada um e nós, claro está, procurávamos descobrir a outra metade. Mas adiante…
O passeio continuou e as sensações repetiram-se até que, a certa altura, eu e o Guilherme reparamos num grupo de “matulões” a espreitarem por um buraco de uma caixa de forma cónica.
Os “garotos” pareciam entusiasmados com o que viam.
- Que será aquilo, ó Fernando? - interrogou o Espírito Santo.
- Não sei, mas não há nada como “efectivamente”. Vamos ver.
Esperámos pela nossa vez, metemos na ranhura da caixa uma moeda de cinco francos… e começou a fita.
Via-se, como em cinema, uma esguia e alta montanha contornada por uma estrada em espiral e, pela estrada acima, corria uma linda rapariga, perseguida por um não menos “guapo” rapagão…
Ela, a primeira vez que nos aparece, está “elegantemente” vestida ; desaparece na curva da estrada e surge, mais acima, já sem o vestido. Na outra volta falta-lhe a “combinação” e assim sucessivamente.
Por sua vez, o rapagão veste um elegante fato de verão. À medida que vai correndo e subindo, vai-se despindo também.
Tantas voltas dão que, a certa altura, ela só tem calcinhas. Ele… em cuecas 1 Depois, a “garota” chega ao cimo da montanha e fica muito atrapalhada porque já não tem para onde fugir. Entretanto, chega o esbelto rapaz, em cuecas. Desaparecem os dois e logo a seguir, a rapariga espreita e diz:
- “Meta mais cinco francos e verá o fim do filme!… “
- O, Guilherme, tens aí cinco francos f
- Espera, deixa procurar…
Por detrás de nós, uma voz adverte-nos:
- Então que é isso?
Olhámos. Era o seleccionador Cândido de Oliveira!
- Vamos meter mais uma moeda para vermos o fim do filme… Já vimos o princípio…
- Vamos mas é embora! Estão todos à vossa espera. No regresso da Alemanha venham ver o resto…
- Não pode ser, senhor Cândido de Oliveira. Tem de ser agora… Para a semana mudam o programa…
- Pois sim, vamos embora e acabou-se o espectáculo.
Pronto! Acabou-se, mas foi uma pena. Estávamos interessadíssimos em ver como a fita acabava porque, a avaliar pelo que víamos nas ruas, nos cafés, nos táxis e nos cinemas - aqui é que é bonito! - não duvido de que o filme acabasse… bem!
Que o leitor vá a Paris e depois verá a dificuldade que terá em contar certas coisas no seu livro de memórias…»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 127 - 129