Memórias de Peyroteo (10)
(cont.)
«“ENGRENAGEM” DO FUTEBOL…
- Às voltas com um contrato -
Entre os meus colegas de trabalho no Grémio das Carnes, em Lisboa, havia adeptos de todos os clubes e até um deles era dirigente do Clube União de Futebol.
Certo dia, um agremiado e particular amigo - Humberto Matias, “tifoso” do Belenenses - chamou-me de parte e disparou esta:
- Tu assinaste um contrato com o Sporting, não é verdade?
- Assinei. Porque o perguntas?
- Não tenhas pressa; ouve o que te digo e responde-me com calma. Se te disser que o contrato não- tem qualquer validade?
- Homem! não brinques; isso não pode ser. O contrato, depois de assinado por mim e, salvo erro, por duas testemunhas, foi enviado à Federação…
- Tu não sabes nada. És um “bom”… Dize-me: já recebeste a cópia que o Sporting te devia ter entregue, depois de sancionada pela Federação de Futebol?
- É verdade que não!
- Pois bem; aconselho-te a telefonar para a Federação a. saber o que se passa… Mas antes de mais nada, dize-me: se, na verdade, tiver havido tramoia, o que pensas fazer? Se quiseres “trintinhas” e mil e duzentos escudos por mês, mesmo que seja necessário estares uma época sem jogar, é só dizeres que a coisa arranja-se. O Belenenses também é um grande clube, fica sabendo.
- Ouve, Humberto. Se, na realidade, tudo for como afirmas, eu vou para o Belenenses.
Por uma questão de confiança, assinei o contrato quase sem o ter lido mas se fui enganado, podes ter a certeza de que o caso vai ser muito falado.
Imediatamente peguei no telefone e liguei para a Federação, donde me atendeu o amigo Mário Santos. Disse-lhe do motivo que me levou a telefonar-lhe e obtive uma informação pouco elucidativa e muito menos convincente:
- Parece-me que o seu contrato foi devolvido ao Sporting para rectificar qualquer coisa que eu não sei bem o que é. Quem trata de quase tudo isso é o senhor Capitão Maia Loureiro, nosso Director. Se, porém, o contrato está cá na Federação, deve estar fechado no cofre e o nosso Director é quem tem a chave.
- Mas o senhor pode fazer o obséquio de se informar melhor e depois…
- Está bem. Telefone amanhã porque só logo à noite estarei com o senhor Capitão Maia Loureiro.
- Muito bem e obrigado. Voltarei a telefonar amanhã.
Depois da conversa com aquele funcionário da Federação, fiquei com a impressão, ou, mesmo, com a certeza de que havia muito de verdadeiro nas afirmações do amigo Humberto Matias, ao mesmo tempo que pressentia que o Mário Santos sabia o que se estava passando, mas nada queria adiantar sem, primeiro, falar com o seu Director.
Entretanto, como estava ali próximo um dirigente de clube - o meu colega e amigo Cesário Pereira Salvador - pessoa conhecedora destes problemas - contei-lhe o sucedido e pedi-lhe um conselho. O Cesário disse-me:
- “Pelo que você acaba de contar, tenho a certeza absoluta de que aí há coisa. No seu lugar, eu não esperava para amanhã; hoje mesmo, à noite, ia à Federação saber o que há ao certo. Ora, se o Mário lhe disse que só à noite estaria com o senhor Capitão, você vai lá e encontra-o. Mas para não dar nas vistas, talvez seja melhor telefonar. Depois fale comigo, aqui no Grémio”.
Peguei no telefone às 21 horas…
- O senhor Capitão ainda não chegou.
As 21,30 ainda não estava e às 22, o Mário Santos informa:
- “Já falei com ò senhor Capitão e posso agora dizer-lhe que o seu contrato com o Sporting deu aqui entrada mas, há já quase dois meses, foi devolvido para rectificação. O período de validade do documento foi indicado por três anos, quando as normas aprovadas pela Federação e propostas pelo seu clube faziam referência a épocas de futebol. Melhor dizendo: o contrato será por três épocas e não por três anos; em vez de 1939/40/41 deve ser 1939/40, 1940/41 e 1941/42, salvo erro de Setembro a Junho ou Julho do ano seguinte. E já agora, deixe-me perguntar-lhe se o Sporting ainda o não chamou para fazer a rectificação?”
- Não senhor, e, portanto, não tenho nenhum contrato com o Sporting?
- Oficialmente, não!
- Obrigado, Mário Santos, pela preciosa informação que me prestou”.
Desligámos. No dia seguinte fui mais cedo para o Grémio e contei ao Cesário Salvador o que se passava.
Tão irritado como eu estava, disse:
- “Não está certo fazerem-lhe uma coisa dessas. Todos os clubes podiam errar o texto de um contrato, menos o Sporting. Habilidades, meu amigo, habilidades!
- Não acredito Cesário, que tivesse havido intenção de me prejudicarem…
- “Pois não! Quisesse o Sporting, neste momento, - por lesão grave ou outro motivo qualquer - deixar de lhe pagar e você estava comido! Para quem recorreria para fazer valer os seus direitos?
- Talvez tenha razão…
- Passe-me você uma procuração e deixe a meu cargo a regularização do assunto. Continuará no Sporting mas com um bom par de contos na algibeira. Como garantia do que lhe afirmo, fique você com o meu automóvel. Faça a procuração e deixe o resto comigo. Você não merece semelhante partida…
Não aceitei a proposta e, entretanto, apareceu o Humberto a quem contei a história. Demais sabia ele quando me falou a primeira vez.
Igualmente, rejeitei a proposta para ingressar no Belenenses.
Para mim, deixar o Sporting, representava morrer para o futebol. Mas impus a mim próprio tomar uma atitude.
Não garanto ter sido eu a procurar o senhor Francisco Franco - pessoa que me entregara, para assinar, o célebre contrato - ouse foi ele a mandar-me chamar para se fazer a rectificação. Se não me falha a memória, foi o senhor Franco que solicitou a minha comparência na sua livraria, ali à Rua Barros Queiroz. Duma maneira ou doutra, o certo é que manifestei o meu desagrado e, até, desgosto pelo acontecido.
- “Acredita que não houve a menor intenção de te prejudicar ou enganar”.
- No entanto, senhor Franco, há já quase dois meses que a Federação devolveu o contrato e só agora se faz a rectificação! Quase todos os dias, depois do almoço, aqui venho conversar consigo e o senhor nada me disse!
- Tens razão; é verdade, mas acredita que foi por esquecimento. Eu seria incapaz de te enganar, pois sabes que sou teu amigo.
Concordo. Só lhe devo atenções e finezas mas gostava de saber quando fazemos a rectificação!?
- Amanhã, depois do almoço, quando aqui vieres.
E assim foi. Voltei a não ler o novo contrato; assinei-o. Como testemunhas figurou, salvo erro, o amigo Jacinto Leal - ainda hoje funcionário do Sporting - e outro que não recordo.
Quando tudo estava pronto, o senhor Franco ofereceu-me cem escudos para eu comprar… chocolates, de que muito gostava e gosto. Claro está que não aceitei a oferta!
Pode, de tudo isto, concluir-se que troquei trinta ou quarenta mil escudos e mil e duzentos por mês, por… cem escudos que não quis receber!
Para mim valeram sempre mais os actos do que o dinheiro.
Hoje, porém, as coisas estão profundamente modificadas. As atitudes bonitas só podem ser tomadas com… dinheiro adiantado!
Se muito tens, muito vales - diz o Povo - e a voz do Povo é a voz de Deus!
Repare-se: “anos” em vez de “épocas”.
Como uma troca aparentemente insignificante, poderia ter feito com que eu, em vez de, durante quase três épocas, ter envergado uma camisola às riscas verdes e brancas, vestisse uma azul com a Cruz de Cristo, continuando, embora, a ser sportinguista, mas a dar o melhor esforço à equipa de Belém!
Preferi continuar no Sporting porque sempre fui e sou sportinguista e, também, porque não acreditei ter havido maldade. Foi um erro involuntário.
Se esta história não tiver outro mérito, que sirva de aviso e lembrança, para se não cometerem outros enganos semelhantes.
Ao contá-la, não me moveu outro propósito que não seja o de referir mais um episódio “curioso” da minha vida de futebolista. Nada mais do que isso.»
In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 90 - 94