Leituras
«[Dimitri Dmitrievich Chostakovich] gostou sempre de futebol a vida inteira. Sempre sonhara compor um hino para o jogo. Era árbitro qualificado. Tinha um caderno especial onde apontava os resultados da época. Nos dias de juventude apoiara o Dínamo e uma vez voou milhares de quilómetros até Tbilissi, para assistir a um jogo. Essa era a questão: tínhamos de lá estar quando acontecia, no meio a multidão, no meio de todas as pessoas em delírio e a gritar. Hoje em dia as pessoas viam o futebol na televisão. Para ele, era como beber água mineral em vez de vodka Stolichnaya, de qualidade extra para exportação.
O futebol era puro, por isso é que sempre lhe agradara. Um mundo construído de esforço honesto e momentos de beleza, com as questões do certo e do errado resolvidas num instante pelo apitar de um árbitro. Sempre o achara muito distante do Poder e da ideologia da linguagem vácua e do saque da alma humana. Mas – gradualmente, ano após ano – foi vendo que era só a sua fantasia, a sua idealização sentimental do jogo. O Poder servia-se do futebol, tal como se servia de tudo o resto. Logo: se a sociedade soviética era a melhor e a mais avançada da História do mundo, então esperava que o futebol soviético o refletisse. E, se não podia ser sempre o melhor de todos, então devia ao menos ser se melhor do que o futebol dessas nações que tinham desprezivelmente abandonado a verdadeira via do marxismo-leninismo.
Lembrava-se das Olimpiadas de 1952 em Helsínquia, quando a URSS defrontara a Jugoslávia de Tito, o brutamontes revisionista da Gestapo. Para surpresa e consternação geral, os jugoslavos ganharam por 3-1. Todos esperavam que ficasse abatido com o resultado, que ouviu na rádio em Komarova, logo pela manhã. Em vez disso, correra até à datcha de Glikman e juntos despacharam uma garrafa de brandy fine champagne.
Mas havia mais a dizer sobre o jogo, além do resultado; ele encerrava um exemplo da imundice que invadia tudo, sob a tirania. Bashashkin e Bobrov: ambos com menos de trinta anos, ambos bastiões da equipa. Anatoli Bashashkin, capitão e médio; Vsevolod Bobrov, garboso marcador e cinco golos nos três primeiros três desafios da equipa. Na derrota frente à Jugoslávia, um dos golos do opositor resultara de um erro crasso de Bashashkin – era verdade. E Bobrov gritara-lhe, no campo mais tarde: “Pau-mandado de Tito!”
Todos tinham aplaudido o comentário, que poderia ser brutalmente divertido, não fosse Bobrov o melhor amigo de Vassili, o filho de Estaline. O pau-mandado de Tito contra Bobrov, o grande patriota. A farsa enojara-o. O decente Bashashkin foi demitido de capitão, enquanto Bobrov acabou por se tornar um herói nacional do desporto.»
BARNES, Julian - O ruído do tempo. 1.ª ed. Lisboa : Quetzal, 2016. p. 171-172