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És a nossa Fé!

Jordão

«SEM SOMBRA DE VEDETA

Aí está ele outra vez, o goleador emérito. Tem 35 anos e escolheu Setúbal para voltar aos relvados, depois de um afastamento penoso em que se disse que acabara para o futebol. Rui Jordão, angolano de Benguela, quer manter-se honesto até ao fim da carreira sem cair no vedetismo.

 

P. - Aos sete, oito anos de idade, quem era o Rui Jordão que dava os primeiros pontapés numa bola? A propósito, a bola era de borracha?
R. - Era uma bola de meia. Nessa altura dá-me a impressão de que não havia muitas bolas de borracha lã na minha zona em Benguela. A bola de meia era mais fácil, era um peúgo roubado ao irmão mais velho, ou ao pai. Jogávamos na rua, claro.
P. - A polícia não chateava?
R. - Não, a polícia não se preocupava, porque tínhamos muito espaço para jogar, não atrapalhávamos nem o trânsito nem a polícia nem ninguém. Assim era fácil os miúdos desenvolverem as suas potencialidades sem interferência. E mesmo que a polícia fosse chatear, a gente encontrava sempre outro sítio para jogar.
P. - A sua habilidade foi notada muito cedo?
R. - Penso que sim, talvez aos dez, doze anos, independentemente de não ser nada oficial. Mas a verdade é que muita gente admirava a minha forma de jogar, diziam inclusivamente que era um futebol já um bocadinho mais adulto. Aos treze, catorze entrei para um clube, o Portugal de Benguela,
para aquilo que seriam os juvenis de hoje. Treinávamos três vezes por semana, mas não tínhamos campeonato; divertíamo-nos uns com os outros, jogávamos uns contra os outros ao domingo. Só isso.
P. - Mas tinham treinador.
R. - Tínhamos treinador. O termo mais usual hoje seria uma escola de jogadores. Ele trabalhava com os miúdos na descoberta de valores para serem integrados na equipa principal.
P. - Benguela é conhecida por ser a terra dos quintalões. Nunca lá estive, explique-me como são.
R. - Ah, os quintalões. Bom, é uma casa e por trás é o quintal, um quintal enorme. Sei lá, aqui na Europa vive-se muito mais apertado. Em Benguela não tínhamos problemas de espaço. Felizmente. O quintalão dava para tudo, para jogarmos à bola inclusive, já que o assunto é esse.
P.- Você só jogava à bola? Ou corria também? Porque há quem diga que a morfologia do Jordão se aproxima da de um velocista.
R. - Por acaso tive uma experiência agradável - e desagradável também. A certa altura proporcionou-se uma ida a Luanda, para jovens, e eu, que poucas ou raras vezes saía de Benguela a não ser para o Lobito, que era a uns trinta quilómetros, pertinho, de boleia, fiquei fascinado pela ideia. E a única forma de ir era participar na corrida de 80 metros.
P. - Que você ganhou.
R. - Não. Eu não tinha a preparação adequada como sprinter. E quem ia a Luanda eram os dois melhores nos testes. A corrida começou, eu ia à frente, mas fiz uma ruptura de todo o tamanho e fiquei em terceiro. Enfim, por especial favor, porque viram que eu teria ganho se não fosse aquilo, lá fui a Luanda.
P. - Que idade tinha?
R. - Uns quinze anos.
P. - Luanda o que lhe pareceu? Uma cidade muito grande? Muito...
R. - Muito grande. Muito diferente de Benguela.
P. - Hostil?
R. - Nessa altura não me apercebi de nada disso. Apreciei foi a diferença. E a beleza de Luanda. Porque eu achava que tudo o que não fosse a minha cidade era belo, apesar de considerar Benguela muito bonita. Um arranha-céus... Nós chamávamos arranha-céus a um prédio de quatro, cinco andares! Na minha idade, jovem, que não saía de Benguela, Luanda foi uma maravilha.
P. - E depois, aos dezasseis, você entrou para o Sporting de Benguela. Para os juniores.
R. - Sporting de Benguela, exactamente, levado pelo meu irmão.
P. - Ele era também jogador ou um simples adepto do Sporting?
R. - Jogador. Fui por influência dele. Aliás a camaradagem nesse tempo dava para as pessoas serem mais unidas, e os meus amigos estavam mais no Sporting de Benguela, de onde por conseguinte a fuga. Não tinha havido nenhuma vinculação ao Portugal, dada a minha idade dos treze, catorze, de modo que fui atrás dos amigos. O ambiente normalmente é que nos puxa, e foi o que aconteceu.
P. - Quanto tempo esteve júnior no Sporting de Benguela?
R. - Duas épocas, antes de vir para o Benfica. Aliás uma época e meia.
P. - Em Lisboa instalaram-no no Lar do Benfica. Como era: uma espécie de colégio? Ou havia futebolistas bastante mais velhos do que o Jordão?
R. - Eu cheguei quase no fim do Lar. Quando chegámos já não estavam os grandes craques. Estavam alguns jogadores que por qualquer motivo não tinham ainda conseguido uma casa, mas nessa altura o Lar era praticamente só para os recém-chegados. Fiquei um ano, depois disso fomos para quartos.
P - Quartos em casas particulares? Como era a sua casa?
R. - A casa não era minha, vamos lá. Tinha uma senhora que me alugava o quarto.
P. - E a senhora sabia que tinha lá um jogador de futebol?
R. - Acho que sim. O único compromisso dela era dar-nos quarto e alimentação, o resto tratávamos nós.
R - O Jordão faz uns anos no Benfica, depois tem uma experiência em Espanha no Zaragoza, depois volta e vem para o Sporting (aquele romance tão falado na época), e agora está no Vitória de Setúbal. Sente-se bem aqui?
R. - Sinto.
P. - Vendo-o treinar, julgo ter percebido que você joga à bola com uma grande satisfação. Acertei?
R. - Satisfação, sim. Eu penso que é assim um pouco. E porquê? Porque o ambiente que eu encontro aqui é muito diferente daquele ambiente que tive no Sporting ou tive no Benfica. Não porque os de Setúbal sejam melhores, é que no Sporting, e não vamos recuar muito no tempo, havia muito mais responsabilidades, menos alegria. Vivíamos em tensão constante. A responsabilidade estava centralizada em duas ou três pessoas, e uma delas era eu. Portanto isso, parecendo que não, rouba-nos a... Rouba-nos quase alguma coisa de bom que a gente tem, que é a alegria de treinar, a alegria de viver, a alegria de mostrarmos às outras pessoas que nós somos alegres.
P. - Ouve-se dizer que o Jordão preza bastante o sentido do companheirismo.
R. - Sem dúvida nenhuma. Isso para mim é fundamental. E eu consegui sempre bons amigos nas equipas onde estive.
P. - Os treinos do Vitória de Setúbal têm uma parte de brincadeira, brincadeira séria...
R. - Sim. Mas estamos a trabalhar.
P. - Um trabalho agradável, para mim que estava de fora. E o Neno sempre a dizer piadas, que giro que é. O Neno é um elemento fundamental para o vosso ambiente, não acha? «Põe aqui os olhos, Conhé, põe aqui os olhos!», gritava ele da baliza.
R. - Realmente o Neno é uma peça fundamental nesse xadrez, chamemos-lhe assim, porque é um jogador de boa disposição e que transmite boa disposição aos outros jogadores, e isso é importante numa equipa de trabalho em que cada um tem os seus problemas e podemos vir, uns mais, outros menos, aborrecidos de, sei lá, das nossas vidas particulares, privadas. O Neno é o bálsamo para algum mal que alguém tenha.
P.-Já percebi que você defende rigorosamente a vida privada.
R. - Sim, sim. Acaba o futebol e começa a minha vida particular. No fim do jogo, chuveiro, casa... É que, depois de um jogo, depois de esforços destes, depois de darmos tudo, precisamos de descanso, independentemente da responsabilidade que a gente tem como profissionais de futebol.
P. - Nessas alturas os jornalistas são uns chatos?
R. - Os jogadores também são. Tem de haver uma compreensão mútua que por vezes não acontece, porque há jornalistas que entendem que o jogador tem de estar sempre disponível, o que por vezes não é o caso. Mas, claro, é chato o jornalista vir ter com o jogador e ir sem trabalho para casa...
P. - Depois de uma paragem de um ano e meio, chegou a pensar que era o fim da carreira, que tinha de ir fazer outra coisa?
R. - Cheguei. Estava muito defraudado com o futebol, e não era com o futebol: com as pessoas do futebol. Houve uma altura em que eu pensei abandonar completamente.
P. -As suas declarações mais solenes são no sentido de não fazer vida como treinador ou secretário técnico. Qual é a alternativa? A indústria hoteleira?
R. - É uma das hipóteses.
P. - A Gare Marítima de Alcântara como foi?
R. - O restaurante? Foi uma experiência.
P. - Por acaso não se comia propriamente mal.
R. - Mas podia-se comer melhor. Agora a Gare Marítima já acabou há muito tempo.
P. - Entretanto o Jordão tem um bar, o 10-A. Com o antigo jogador Artur e o Viana, a princípio, e depois com o Viana. Qual é o melhor «barman», você ou o Viana?
R. - O Viana, o Viana! Ele é que sabe dessas coisas.
P. - O negócio é economicamente interessante?
R. - Tudo é interessante quando a gente gosta.
P - Não é portanto uma perda de tempo o 10-A.
R. - Mesmo economicamente não é. Mas eu acho que se nós lutamos por criar qualquer coisa de que a gente goste, e se não corre financeiramente bem, há sempre aquela força que nos leva a melhorar. O 10-A não dá muito, dá o suficiente. Há muita concorrência de bares em Lisboa, e o fundamental é o 10-A funcionar para aqueles que hoje vivem do 10-A. Porque a primeira experiência, em Alcântara, não funcionou, mas há que não desistir.
P. -Você veio para o Setúbal também porque já tinha tido uma boa experiência com o treinador, o Malcolm Allison, no Sporting?
R. - Sim, foi tudo positivo.
P. - Mas ele dá-vos grandes sovas nos treinos! Hoje de manhã...
R. - Hoje de manhã nem por isso. O senhor talvez tenha ficado impressionado, mas não foi muito duro, tem havido dias piores. E a alegria que se vive a cada momento faz com que eu não sinta a carga negativa que o senhor diz.
P. - Vocês fazem estágio no Vitória?
R. - Não, porque há responsabilidades. Não é preciso.
P. - O tempo que o Jordão jogou em Espanha no Zaragoza, recordado à distância de alguns anos, foi positivo?
R. - É sempre positiva uma experiência dessas, mesmo quando foi só negativa.
P. - Houve um jogador sul-americano que o hostilizou, o Arrúa. O nome é esse?
R. - Sim, sim. Até eu era para ficar três anos e só fiquei um. No fim de três meses queria-me vir embora, só que não podia. Não encontrei lá o ambiente que esperava, portanto houve uma adaptação muito difícil, entraves de vária ordem, de forma que mostrei à direcção a minha vontade de voltar para Portugal.
P. - Ao menos a temporada espanhola deu para arredondar o pé-de-meia?
R. - Sim, um bocadinho.
P. - Hoje, não sei se você concorda, os ordenados dos futebolistas mais cotados foram inflacionados.
R. -A inflação é teórica. Não digo que ela não exista depois de 1974 ou 1975, mas a maior inflação é a inflação de fora...
P. - De fora?
R. - É que hoje o jogador ganha 500 e lá fora dizem 5 000. Se ganha 1 000, diz-se que ganha 10 000.
P. - E a vida pós-futebol?
R. - É muito difícil, e eu posso dizer isso porque estive parado um ano e meio. Acho que há uma readaptação noutro sector da sociedade...
P. - Readaptação penosa?
R. - Exacto. É como se nós fôssemos outra vez jovens de dezoito ou dezanove anos à procura de emprego. E deixar de gostar do futebol assim de repente...!
P. - O fisco vai apertar os calos aos profissionais de futebol. Qual é a sua opinião?
R. - Tem que haver moralização. Nesse sentido poderá ser benéfico até para o jogador de futebol, porque o jogador precisa de uma legalidade, precisa de ter força, de poder falar como qualquer outro cidadão. Só que eu acho que as coisas têm que ser medidas, o futebol é um bocadinho complexo para se ditarem leis que...
P. - O vosso sindicato defende-o completamente? Deveria ter mais força?
R. - O nosso sindicato infelizmente não tem força. Nós somos uma classe bastante egoísta, cada um por si. Até por isso a legalidade tem de aparecer algum dia, para bem dos futebolistas.
P. - Aflige-o o problema dos trabalhadores com salários em atraso?
R. - Isso aflige toda a gente, mesmo quem aufere importâncias muito superiores aos salários que esses trabalhadores deviam receber. Só que pouca gente faz por que isso melhore. Você pergunta se eu sinto, e eu sinto, mas não posso fazer 
nada por esses trabalhadores, não sou governante, não dito leis, não posso resolver nada.
P. - Compare o Allison com outros treinadores que teve ao longo da sua carreira.
R. - Eu direi que o Allison foi o treinador que mais me marcou, pela rectidão, pela verdade que está sempre com ele, pelos métodos de treino, pela sua conduta na vida dentro e fora do futebol. Foi o único treinador que eu considerei líder, e a liderança é muito difícil. O líder não se faz: nasce e é. Há muita gente que gostaria de sê-lo mas não tem estruturas interiores para se assumir como tal. O Allison, sem o apregoar aos quatro ventos, é-o na verdade, demonstra-o dia a dia. Neste tempo todo que eu o conheci foi sempre assim. Não se deixa influenciar pelos resultados negativos - nem positivos -, é sempre a mesma pessoa, tem sempre a mesma linha.
P - Ser vedeta é complicado?
R. - Para mim é. Eu não consigo ser a vedeta. Não consigo por exemplo dar alegrias ao jornalista que me quer entrevistar, nem aos entusiastas do clube, os indivíduos que me encontram num restaurante e são adeptos do clube que eu neste momento estou a representar, quer dizer, há ocasiões em que eu descuro isso tudo. Descuro, não por vaidade, que seria já vedetismo, mas porque defendo muito a minha privacidade. Devia talvez, como lhe disse, dar alegrias às pessoas, satisfazendo um pedido ou indo até à mesa do adepto que me chamou.
P. - Resumindo, é um homem reservado?
R. - Exacto: reservado. Mas há uma excepção, que é com as crianças, a quem continuo a dar toda a atenção, mesmo sendo contra o meu feitio. Vou-lhe arranjar um exemplo. Estou zangado, zangado a sério, um jornalista vem pedir-me uma entrevista e eu não quero falar com ninguém, digo 'não'. Não sou hipócrita. Mas se for uma criança é diferente, falo com ela e satisfaço o seu pedido.
P. - Mantém-se informado sobre o campeonato angolano, o Girabola?
R. - Sinceramente não.
P. - Nem sabe do Sporting de Benguela? Nada?
R. - Nada, nada. O ano passado ainda sabia por correspondência do meu irmão, mas depois ele foi tirar um curso à Alemanha, de treinador de futebol, e perdi um bocadinho o contacto com Angola.
P - Taça dos Clubes Campeões Africanos: acompanha a prova?
R. - Também não.
P. - Há quem sustente, talvez de forma estereotipada, que o futebol é uma selva. Acha alguma ponta de verdade nisto?
R. - Uma ponta muito grande! Muito grande! Há muitos sentimentos negativos no futebol. Como há interesses enormes, as pessoas transformam-se, e sempre para pior. Toda a gente que entra no meio do futebol torna-se egoísta, cada um quer salvar-se a si próprio. Depois de tudo o que passei ao longo da minha carreira, dou razão a quem diz que o futebol é uma selva. Coitados dos leões lã das selvas!
P. - De vez em quando uma equipa queixa-se de que foi prejudicada por um árbitro...
R. - ...o que é fácil. É sempre fácil na vida atribuir às outras pessoas os nossos erros ou as nossas carências. As massas associativas precisam de arranjar bodes expiatórios.
P. - O jogador por vezes não é também um bode expiatório?
R. - Qualquer um serve. O jogador, o treinador. E o árbitro. E não é só no futebol, mas noutros sectores da vida: gostamos de arranjar alguém que leve as nossas carências. Agora o árbitro é o alvo n.º 1. Umas vezes por incapacidade - porque há casos de incapacidade -, mas outras apenas porque errou, ele tem que decidir e é humano errar numa decisão.
P - Já cumprimentou algum árbitro por uma boa arbitragem?
R. -Já. E com satisfação, independentemente de noutras situações considerar que o árbitro errou e me prejudicou. Mas não adianta nada atirá-lo para o covil dos lobos, para o pisar, para o massacrar no dia seguinte, para ser o grande réu no meu fracasso dentro do campo.
P - Tenho estado a pensar, Jordão, em belos golos seus que depois foram inúteis. Aquele golo contra a URSS que levou Portugal a França - e Portugal não ganhou o Europeu. Depois aqueles dois golos contra a França, um muito bonito e o outro ajudado por um ressalto de bola...
R. - Ajudado, sim senhor.
P. - ... e que também inúteis porque o Platini...
R. - ... o Platini estava nos seus dias.
P - Pelo Vitória de Setúbal o primeiro golo seu, contra o Chaves, não impediu que vocês perdessem por 3-1 em casa.
R. - É, é uma sensação de que não chegámos a fazer nada. Mas os anos dão-nos estaleca para aguentar essas situações, e bem lá no fundo afinal sabemos que fizemos tudo. Depois os nossos desaires são desaires da equipa, só porque marquei um golo bonito não vou dizer que eu é que estou bem e os outros não prestam. Mas a desilusão com a França, no Europeu, foi mais que uma desilusão: foi um choque.
P - Fala dessas coisas com os seus vizinhos? Dá-se com os seus vizinhos? Eles conhecem-no?
R. - Conhecem. Mas eu não vivo num prédio, vivo numa casa independente. Tenho, chamemos-lhe assim, um vizinho do lado direito. A minha casa é uma destas casas com um quintal na parte de trás...
P. - Pronto, o quintalão de Benguela!
R. - Em Benguela, por falar nisso, conhecíamo-nos todos uns aos outros. Aqui a gente tem que se adaptar. Infelizmente. Quando cã cheguei, reparei que um vizinho, um vizinho de andar, podia não me passar cartucho. Essa mentalidade é má.
P. - Em sua casa quem é o ministro das Finanças: a sr.a Jordão, o próprio Jordão?
R. - Sou eu. Ela é o secretário de Estado... Quer dizer, eu oriento em termos gerais, mas há uma parte que pertence a ela.
P. - Qual é a sua refeição favorita?
R. - Bife.
P. - Coisa mais monótona!
R. - Eu não tenho o prazer da mesa, seria incapaz de sair de casa para ir a tal ou tal sítio comer determinada coisa. De maneira que o que lhe estou a dizer é uma habituação: bife, arroz, às vezes peixe grelhado, pouca batata. No meu caso foram dezasseis anos desta dieta. De vez em quando lá experimentamos uma feijoada, ou um cozido à portuguesa, um bacalhau, mas nada disso entra no dia a dia.
R - A culinária angolana seria impensável para a sua vida de jogador?
R. - Impensável.
P. - Recorda algum prato angolano preferido?
R. - Muamba. A que se come aqui em Portugal não é genuína, está falsificada.
R - Um caldinho de peixe, também gostava?
R. - Muzongué? Óptimo.
P. -A família que você deixou em Angola como está? Bem? Ou em situação precária?
R. - Está bem.
P. - Algum amigo seu da juventude pertence ao governo angolano?
R. - Da minha criação, não.
P. - Onde fez a tropa?
R. - Em Leiria.
P. - Como foi? Apertaram-no muito?
R. - Bem... A primeira semana tive o fim-de-semana cortado porque me desenfiei.
P. - Quais as qualidades decisivas para um jovem candidato à profissão de futebolista?
R. - Primeiro a humildade, e ela terá de continuar até ao fim da sua carreira. (Mas é humildade mesmo, não a imagem da humildade!) Depois a honestidade. Mesmo que o jogador a não encontre nas outras pessoas, é fundamental, até para a tranquilidade interior. E por fim o sentido do profissionalismo. Evidentemente que ao longo dos anos o jogador vai-se corrigindo pelos erros cometidos. Ninguém é perfeito. Porque o futebol é bastante difícil, sobretudo para essas pessoas humildes e honestas.
P. - Saltillo?
R. - O caso Saltillo veio cá para fora, mas há muitas outras situações, falo das relações clube-jogador, que nunca chegaram a ser conhecidas.
P. - Basicamente porquê?
R. - Porque o jogador está diminuído face ao patronato. É a este que continua a dar-se força. Depois o jogador, um egoísta, não tem quem o defenda. Resultado, muitas vezes defende-se calando-se.

(22.01.1988)»

 

In.: PACHECO, Fernando Assis - Retratos falados. 1ª ed. Porto : Asa, 2001.  pp. 91-105

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