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És a nossa Fé!

João Rocha...

... por Vítor Serpa.

 

«As lagostas de Nova Iorque

 

A chegada de João Rocha à presidência do Sporting foi um acaso do destino. Um momento particular, uma oportunidade que se agarra por instinto.

Poderia ter sido presidente do Vitória de Setúbal, e até chegou a preparar a candidatura. Porém, acabou por aceitar ser candidato à presidência do Sporting, e a verdade é que nos seus treze anos à frente do clube acabou por se tornar num líder histórico, o maior de sempre da história do emblema fundado pelo visconde de Alvalade.

João Rocha tinha estudado na Escola Comercial Marquês de Pombal, em Lisboa. Tinha sido colega de aula de um primo direito do meu pai, que esteve ligado ao futebol do Belenenses, Egídio Serpa. No entanto, João Rocha costumava dizer-me que tinha sido colega do meu pai e seu companheiro na equipa de futebol da escola. Fazia essa confusão, provavelmente, por se lembrar do nome Serpa e por ser verdade que o meu pai também tinha frequentado a mesma escola, embora com três anos de diferença. O meu pai nascera em 1927 e João Rocha em 1930.

Foi um presidente inovador, firme, teimoso, por vezes belicista, sempre rodeado por um conjunto de dirigentes da «velha guarda», onde sobressaía a figura inteligentíssima do Dr. Nunes dos Santos, que tinha sobre ele uma enorme influência.

Na segunda metade da década de 70, eu começava a crescer no jornalismo e no jornal A Bola. Os jornalistas mais jovens do jornal, eu e o Joaquim Rita, trabalhávamos como saltimbancos, percorríamos o país de Norte a Sul e não passávamos mais de meia dúzia de fins-de-semana em Lisboa. Depois, o Rebelo Carvalheira, um dos grandes repórteres do jornalismo português, assassinado na sua residência, no ano de 1983, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, veio de Angola e também se juntou ao duo itinerante.

A pouco e pouco fui ganhando a confiança profissional de Vítor Santos, então o chefe de redacção e líder absoluto d’A Bola, e comecei a ser chamado a fazer reportagens e entrevistas no Benfica e no Sporting, que era o patamar superior do jornalismo desportivo em Portugal. É curioso recordar, hoje, como era próximo, nesse tempo, o relacionamento com jogadores de futebol, treinadores e dirigentes, incluindo presidentes de clubes.

Curiosamente, a minha relação profissional com João Rocha foi-se tornando sólida e sobrevivia com alguma facilidade aos momentos menos bons da relação institucional do jornal com o Sporting, que sempre olhou para A Bola como benfiquista, apesar do reconhecido sportinguismo de Vítor Santos.

Fui algumas vezes convidado para os célebres almoços na sua esplêndida casa, na Lapa. João Rocha adorava cozinhar para os convidados e fazia gala das suas capacidades culinárias. Eram reuniões abertas, com gente muito diversa e dispersa. Reuniões simpáticas, onde nunca alguma coisa me foi pedida que me levasse a sentir-me usado. Mesmo assim, não era um convidado muito assíduo, porque achava que tanta simpatia poderia pôr em risco a minha independência ou a minha imagem de independência. Lá d’A Bola, o convidado mais frequente era o Alfredo Farinha, de quem João Rocha muito gostava, apesar de o saber benfiquista.

Nessas reuniões, falávamos muito sobre o Sporting. O presidente tinha uma ideia muito clara e lúcida sobre o que queria para o clube. Sabia que o Benfica tinha uma base de apoio muito maior e, por isso, uma dimensão que aconselhava que fosse o Sporting a escolher o campo de luta. De forma inteligente, João Rocha optou por uma escolha baseada na valorização da importância das mais diversas modalidades, do atletismo ao hóquei em patins, da ginástica ao andebol, que deram ao clube um lugar único no desporto português.

A ginástica levou centenas, talvez milhares, de novos sócios ao Sporting. O atletismo e o hóquei deram títulos nacionais e internacionais. No andebol e no básquete, o Sporting era invencível em Portugal.

«Se queremos combater o Benfica, temos de ser nós a escolher as armas com que nos batemos», dizia Rocha, com uma noção muito lúcida e pragmática da realidade. E a verdade é que conseguia muitos sucessos nesse combate.

Talvez já poucos se lembrem, mas João Rocha foi o primeiro presidente de um clube português a pensar na mudança de paradigma de todo o edifício, velho e ultrapassado, em que assentava o futebol português. Queria gerir o Sporting, e em especial o futebol profissional do clube, como se fosse uma empresa. Criou, assim, a Sociedade de Construções e Planeamento, que seria aprovada pelo Governo de Marcelo Caetano em Março de 1974, um mês antes do 25 de Abril.

Os tempos de revolução que se seguiram inviabilizaram o projecto inovador e futurista. Tempos que não foram fáceis para João Rocha, um empresário sem especial relação com o mundo da política. Visionário e com espírito pioneiro, aproximou-se da República Popular da China, ganhou a confiança de figuras importantes do país, que, então, era para nós tão distante quanto desconhecido. Ganhou ainda maior dimensão como empresário e levou o Sporting a novas oportunidades de crescimento, através de uma parceria estratégica com os chineses.

Era, no entanto, nos Estados Unidos da América que João Rocha se sentia no «seu mundo». Acompanhava sempre o Sporting nas digressões de Verão pela América e em algumas fiz parte do grupo de jornalistas destacados para a cobertura desses torneios de fim de época, onde muitos dos clubes portugueses se financiavam para pagar ordenados no longo deserto do defeso competitivo.

Numa dessas digressões, o Nuno Ferrari, que já tinha sido submetido, em Portugal, a uma intervenção cirúrgica ao coração, foi acometido de um novo ataque cardíaco grave. João Rocha logo providenciou que ele fosse transferido para um hospital nova-iorquino de renome, mas essa decisão viria a levantar problemas com o seguro.

O Sporting terminou a digressão, voltou para Portugal, o Nuno permaneceu internado e João Rocha continuou a acompanhar, de perto, a sua recuperação. Quando o hospital deu alta ao Nuno, a questão do pagamento ainda não estava resolvida com o seguro. João Rocha nem hesitou. Pagou a despesa e ele regressou a Lisboa, em condições de segurança, com acompanhamento especializado no avião.

Não quero dar uma impressão errada da figura humana de João Rocha. Aquele que foi o mais emblemático presidente do Sporting não tinha uma personalidade fácil. A sua relação com os outros baseava-se numa ideia de mando um tanto ou quanto monárquico. Era um líder absoluto e absolutista. Governava o Sporting numa liderança forte, era crítico duro e até intransigente do poder político, que considerava incapaz de entender o que era essencial para o desenvolvimento do país, tentava dominar no território mais vasto que pudesse, em especial, na área dos negócios e no sistema desportivo.

Também procurava exercer pressões fortes sobre os jornalistas. Alguns, gente de espinha menos direita, aceitavam submeter-se aos seus desígnios e acho que chegavam mesmo a receber algumas compensações por essas fraquezas do espírito. Outros não transigiam.

Num Verão em que acompanhei o Sporting na sua habitual digressão aos Estados Unidos, a minha relação com João Rocha estava em baixa. Cumprimentávamo-nos, mas não nos demorávamos à conversa como noutras alturas.

Ora, em todas as digressões de clubes portugueses e da Selecção Nacional, era bom hábito e costume os jornalistas serem convidados para um almoço ou jantar de convívio com os dirigentes. João Rocha cumpria sempre esse ritual e convidou-me, a mim e aos outros jornalistas, para um jantar especial em Nova Iorque. Seria um jantar, só, de lagosta.

Achei o convite exibicionista e despropositado. Além do mais, poderia parecer que aceitava resolver o problema que nos distanciava pelo preço de um jantar de lagosta. Recusei, mas tive o cuidado de ter a gentileza de explicar que o fazia, apenas, por razões profissionais. A redacção, em Lisboa, esperava o meu trabalho e tinha de ficar no quarto do hotel a escrever.

João Rocha pareceu compreender a justificação. Era sabido que os jornalistas d’A Bola, então ainda um trissemanário, escreviam quilómetros de prosa em reportagem, especialmente quando eram enviados especiais ao estrangeiro. Foi aliás essa cultura jornalística uma das grandes responsáveis pelo crescimento e sucesso do jornal.

Fui, de facto, para o meu quarto e fiquei a escrever durante longas horas. Já estaria perto das dez horas da noite quando me bateram à porta. Fui abrir. Era um empregado do hotel, por sinal, português. Trazia um carrinho com uma enorme bandeja tapada e uma garrafa de vinho branco mergulhada num frappé com gelo.

«Com os cumprimentos do senhor João Rocha», disse-me o empregado, antes de sair.

Destapei a bandeja e não pude deixar de largar uma gargalhada. Não uma, mas duas lagostas de deliciosa aparência e um bilhete:

«Meu caro Vítor,

Espero que aceite este meu pequeno gesto, como homenagem à nossa amizade».

No final, a assinatura:

«João Rocha»

Na sua luta constante por um Sporting líder no futebol português, teve de suportar e de enfrentar, não raras vezes, uma surpreendente aliança entre o FC Porto e o Benfica. Era um combate desigual, que João Rocha travou sempre com enorme coragem.

Com ele, o Sporting conheceu um trajecto difícil, sim, mas consistente e coerente. Tornou maior um clube que já era grande e deu-lhe a necessária identidade para poder marcar diferenças. Em tempos de penúria, investiu dinheiro próprio. Quase sempre a fundo perdido. Sem outra recompensa que não fosse a consolidação da sua indiscutida presidência, que duraria treze anos.

Como sempre acontece, depois de uma liderança forte e muito personalizada, o seu afastamento causaria danos ao Sporting, como se de um forte abalo sísmico se tratasse, e cujas réplicas se vieram a sentir ainda por muitos anos. Acho que ainda hoje, apesar de enfraquecidas, se vão sentindo...»

 

 

In.: SERPA, Vítor - Há vida nas estrelas. 1ª ed. Lisboa : Federação Portuguesa de Futebol, 2019. pp. 79-83

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