Hoje giro eu - Anatomia da Grei leonina
Era uma vez um clube. Mais do que um clube, um clã de irredutíveis leões, mestres na arte de resistência. A falta de presas dividira a tribo ao longo dos anos, a qual, esfomeada, se desunira. A coroa de Rei Leão há já gerações que passava de cabeça em cabeça e resistir, na esperança de um futuro de abundância, era a único elo que ligava estes leões. Tudo o resto era motivo de discórdia. Nesse transe, grassavam as incongruências: quem criticava o défice democrático do líder, ao mesmo tempo condenava os reparos que outros leões faziam à forma como a alcateia se (des)organizava na caçada e, se porventura, o leão procurava silenciosamente atingir os seus objectivos, logo os que anteriormente haviam afirmado que o excesso de rugidos espantava a caça se incomodavam. Quando o insucesso já era evidente, a alcateia dividia-se entre os que criticavam a táctica empregue e os que atacavam os que previamente haviam avisado de que correria mal. Para aqueles, estes eram uns desestabilizadores (mesmo que tivessem 8 milhões de euros de razão) e com isso tinham prejudicado a acção na savana. E assim se passavam os anos...
É claro que situações destas só ocorrem no reino animal. Os humanos, e em particular os sportinguistas, têm uma racionalidade que os leva a agirem para prevenir uma crise e a unirem-se quando esta se consuma. Em todo o caso, sobre o Sporting, versão 2018/19, gostaria de Vos dizer o seguinte:
- José Peseiro teve a coragem de pegar numa equipa em cacos. Contrariando a ideia que eu tinha à partida, do meu ponto-de-vista, o treinador tem sido exemplar nos casos disciplinares. Nenhum jogador (como nenhum sócio) pode estar acima do Sporting Clube de Portugal e tal é válido tanto para um jovem (Matheus Pereira) como para um jogador consagrado (Nani). Se o treinador se impõe e castiga um jogador importante que infringiu as regras, a mensagem ecoa em todo o balneário. Assim tenha o suporte da sua Direcção (vidé o caso que envolveu Mourinho e Baía, aquando da passagem do setubalense pela cidade invicta);
- Não é dele a culpa de jogadores já com 23 anos (Palhinha e Geraldes) terem a ansiedade natural de poderem ser opção no clube, visto nunca o terem sido durante os últimos 3 anos (foram usados apenas para mascarar a péssima campanha de 16/17), mas a história dos jogadores quererem sair está claramente mal contada, porque um atleta com contrato só vai embora se o clube quiser ou se alguém bater a cláusula de rescisão. Em sentido contrário, crédito total a Peseiro pela aposta em Jovane, grande revelação até agora do campeonato;
- O clamor dos sportinguistas que pediam a utilização de Marcus Acuña como lateral esquerdo foi ouvido, o que não deve ser entendido como um sinal de fraqueza do treinador, mas sim como um acto de inteligência;
- É por demais evidente que o duplo-pivô não é um sistema de um candidato ao título, mas é justo dizer que ainda não surgiu um jogador que desse totais garantias na posição "8";
- Ainda assim, e enquanto esperamos por Sturaro - melhor hipótese para essa posição, embora também possa ser utilizado na posição "6" e até mesmo como lateral direito -, Wendel deveria ter sido mais testado e mesmo Bruno Fernandes poderia ter recuado no terreno, passando Nani (porque não temos Geraldes) para o apoio ao ponta-de-lança, opções que o técnico entendeu não tomar;
- É normal o descontentamento de quem não é resultadista e analisa o processo, dado o que se pode observar no relvado. Não é menos sportinguista quem toca na ferida do que quem prefere a ignorar. Já o ano passado, as criticas a JJ eram mal vistas porque íamos ganhando. No fim, foi o que se viu. E não vale a pena falar do jogo da Madeira, ou de Alvalade contra o Benfica, porque aí o título já tinha fugido. Por vezes, quem está demasiado perto não vê tão bem. O afastamento dá outra perspectiva das coisas e as críticas dos adeptos podem ser úteis desde que não ultrapassem os limites da urbanidade;
- Não se pode confundir estabilidade com situacionismo, da mesma forma que não se deve misturar descontentamento ou enfado com assobios;
- Sendo certo que o trabalho de Peseiro tem uma série de atenuantes "ex-ante", não nos podemos esquecer que somos o Sporting e que a exigência num clube desta dimensão é sempre o título de campeão nacional, mais a mais numa época, dir-se-ia, decisiva quanto ao futuro do clube como o conhecemos, à luz do desequilíbrio que uma nova não participação na Liga dos Campeões provocaria face aos rivais;
- A saída de Piccini não parece ter sido devidamente colmatada, pelo menos no que se refere ao capítulo defensivo. É certo que contratámos Bruno Gaspar, mas este, apesar de ter jogado num campeonato muito táctico como o italiano, parece dar mais que Ristovski apenas no capítulo ofensivo. O macedónio tem mostrado lacunas no posicionamento, preenchimento do espaço interior e acompanhamento das movimentações dos adversários (não pode ter os olhos só na bola), o que esteve na origem dos golos do Benfica (marcou João Félix de costas) e do Braga (não compensou devidamente a ida de emergência de Coates à lateral), para além de ter facilitado contra o Marítimo, em lance salvo "in extremis" por Acuña;
- Terminar o jogo contra o Marítimo com três médios defensivos é um excesso de zelo que, como tal, é mais prejudicial do que útil. Por razões conjunturais, estruturais e de estatuto. Conjunturais, porque a margem de dois golos e os cerca de 15 minutos que faltavam de tempo de jogo eram uma base confortável para dar tempo de jogo a elementos que se esperam poder vir opção atacante, no futuro; estruturais, porque dado o excesso de jogadores para as posições "6" e "8" (Battaglia, Petrovic, Gudelj, Sturaro, Wendel, Miguel Luís e até Bruno César, Bruno Fernandes e Acuña), não é crível que Misic, pelo que mostrou até hoje, venha a ter grande espaço no plantel, pelo que a sua utilização terá sido pontual e não a semente de algo que possa dar bons frutos mais para a frente; de estatuto, porque a história do Sporting não se coaduna com a imagem de que joga à clube pequeno, ainda mais quando não defronta o Real Madrid ou Barcelona, mas sim o Marítimo;
- Demasiado conservadorismo leva a poucos golos marcados. À sexta jornada, somos apenas o sexto ataque da competição. Com menos 2 golos que o Rio Ave, menos 4 que o Santa Clara, menos 5 que o Benfica, menos 6 que o Braga e menos 7 que o Porto. É que se a nossa estratégia passa por pensar jogo-a-jogo, então não nos esqueçamos que o objectivo do jogo é o golo;
- Ponto 12 como o do 12º jogador: sendo certo de que as exibições têm sido muito pouco conseguidas - e atenção que a forma é importante, na medida em que um bom espectáculo atrairá mais sportinguistas ao estádio, o que será importante, não só económicamente mas também como fonte de união -, fundamental será ganharmos o campeonato. Embora não se possa sempre pedir ópera, a generalidade das equipas campeãs tem momentos arrebatadores de bom futebol. (Isso, aliás, deveria fazer parte do nosso ADN de clube.) Para além de que, estou em crer, bons jogos ajudariam a sarar algumas feridas ainda abertas (lá está, a união não se pede, conquista-se com comportamentos). Em todo o caso, pese o aborrecimento ou tédio das nossas prestações, é importante, como nunca, que sócios, adeptos e simpatizantes estejam com o clube. É que, goste-se, ou não, do presidente, da equipa técnica, dos jogadores, nunca daremos a este grande clube na proporção daquilo que ele já nos deu: o imenso privilégio que é fazer parte de algo grandioso, as vivências, amizades, escape, alegrias e, também, algumas tristezas (sim, porque sem estas, como poderíamos valorizar a glória das vitórias?). VIVA O SPORTING !!!