«E achavam que era com medo que os jogadores iam começar a jogar mais, era isso?»
«– Mas entraram lá de cara tapada e com essa atitude numa de dar o tal ‘aperto’, para criar medo. E achavam que era com medo que os jogadores iam começar a jogar mais, era isso?
– Hoje em dia tenho a certeza que o medo não motiva as pessoas. Na altura o que podia pensar, e que é estúpido, era que os jogadores teriam de dar o máximo mas de facto não tenho direito de pedir satisfações a ninguém…
– Sim mas o medo, o bato, o ameaço, o vou a casa, o que é que isso pode motivar?
– Sim, tem toda a razão…
– Porque isso do estamos muito ofendidos são balelas… Sabe, guardei aqui duas frases da conversa: ‘Honra a quem foi a Alvalade’ e ‘Deus perdoa, a Juve Leo não’… Portanto, ainda foram glorificados até perceberem que tinha dado barraca… O que é que motivava? Um pai dá uma grande tareia um filho porque em vez de passar teve muito bom, ajuda alguma coisa? Motiva?
– Acho mesmo que na altura… Não queria de todo amedrontar os jogadores… Ia pedir justificações…
– Mas pelo que ouvimos aqui ninguém perguntou nada, foi logo a virar… Foi entrar, agir e sair…
– Falo por mim, só queria mesmo encontrá-los no campo e falar… Sei que as vítimas aqui são eles, não sou eu. Como tem dimensão, quero pedir desculpa e às vezes meto-me no lugar deles e pensar… Quando fui preso pensei nisso, nas conversas que tive com a minha família, comentava com a minha tia, que é médica, porque tem casos desses… Não querendo voltar atrás que não posso, que me mudou a vida, a única coisa que posso fazer é pedir desculpa e afastar-me destes fenómenos. Não venho aqui dizer que sou inocente, participei nos grupos, estive lá…»
Não me recordo se alguma vez cheguei a escrever sobre o que aconteceu em Alcochete. Na verdade, durante algum tempo creio que fiz tudo para ignorar ou tentar esquecer o que fui lendo nos jornais e redes sociais e vendo na televisão. É complicado, as notícias (fruto da exploração jornalística) foram e têm sido permanentes. E tentar ignorar não permite apagar o que aconteceu.
As declarações de Tiago Neves (um dos arguidos do processo Alcochete) que li reproduzidas no jornal Observador são um retrato, não apenas na sua experiência individual, mas de um modo de estar em sociedade. A juíza que o interroga pergunta de forma lapidar «E achavam que era com medo que os jogadores iam começar a jogar mais, era isso?» Quão fanáticos temos de ser para acreditar numa coisa destas? Quão alienados da realidade temos de estar para nos transformarmos em mitomanos? Quem acredita que este é um fenómeno exclusivo do futebol ou sequer do desporto?
A minha relação com o futebol (e de certa forma, com o próprio Sporting) mudou naquele dia. Não consigo deixar de ir a Alvalade ou de seguir os jogos na televisão quando jogamos fora de casa, mas sinto que perdi a alegria e a paixão pelo jogo. Comecei a ver futebol na televisão em 1991 (campeonato do mundo de júniores em Lisboa) e a frequentar estádios de futebol em 1992 (no estádio da Medideira a ver o Amora). Alvalade, acompanhado pelo meu pai e, mais tarde, pelo meu irmão, começou a ser uma visita quinzenal a partir de 1999. O meu avô, que nunca conheci, era um apaixonado tão grande pelo seu Piedade que faleceu enquanto assistia a um jogo.
Não tenho filhos, mas se algum dia os tiver não estou certo que os queira ver num estádio de futebol. Tudo isto porque leio e oiço diariamente gente que não só acredita em teorias da conspiração, como defende que um jogador de futebol com medo joga mais.