"Devo tudo o que sei sobre moral ao futebol", diz o escritor Albert Camus
Olhando para o nosso lado...
«VALE TUDO
Em 1988, jornalista mexicano Miguel Ángel Ramirez denunciou uma fonte de juventude. Alguns jogadores da selecção juvenil do México, que tinham ultrapassado a idade permitida em dois, três e mesmo seis anos, tinham sido banhados nessas águas mágicas: os dirigentes tinham falsificado as suas certidões de nascimento e arranjado passaportes falsos. Submetido a esse tratamento prodigioso, um dos jogadores tinha conseguido ser dois anos mais novo do que o seu irmão gémeo.
Então, o vice-presidente do Guadalajara declarou:
- Não digo que seja uma coisa boa, mas sempre se fez.
E Rafael del Castillo, que era o manda-chuva do futebol juvenil, perguntou:
Porque é que o México não pode ser intrujão, quando por norma, outros países o são?
Pouco depois do Mundial de 1966, o inspector da Associação de Futebol Argentino, Valentín Suarez, declarou:
- Stanley Rous é um homem desonesto. Organizou o Mundial para que a Inglaterra ganhasse. Eu faria o mesmo se disputasse na Argentina.
A moral do mercado, que no nosso tempo é a moral do mundo, autoriza todas as chaves para a obtenção do sucesso, mesmo que sejam gazuas. O futebol profissional não tem escrúpulos, porque integra um sistema inescrupuloso que compra eficácia a qualquer preço. E ao fim e ao cabo, o escrúpulo nunca foi grande coisa. Escrúpulo era a menor medida de peso, a mais insignificante, na Itália do Renascimento: Cinco séculos depois, Paul Steiner, jogador alemão do Colónia, explicava:
- Jogo por dinheiro e por pontos. O rival quer tirar-me o dinheiro e os pontos. Por isso tenho de lutar contra ele recorrendo a todos os meios.
E o jogador holandês Ronald Koeman justificava assim o pontapé do seu compatriota Gillhaus , que deu cabo do francês Tigana, em 1988:
- Foi um gesto de grande classe. Tigana era o mais perigoso e era preciso neutraliza-lo a todo o custo.
O fim justifica os meios, e qualquer rasteira é aceitável, embora convenha passa-la dissimuladamente. Basile Boli, Olympique de Marselha, um defesa acusado de maltratar tornozelos alheios, contou o seu baptismo de fogo: em 1983, estatelou com uma cabeçada Roger Milla, porque este estava a enlouquecê-lo com as suas cotoveladas. E Boli revelou a experiência:
- Eis a lição iniciática: bate antes que batam, mas bate discretamente.
É preciso bater longe da bola. O árbitro, como as câmara de televisão, tem os olhos postos na bola. No Mundial de 1970, Pelé sofreu com a marcação do italiano Bertini. Depois elogiou-o assim:
- Bertini era um artista a cometer faltas sem ser visto. Esmurrava-me as costelas ou o estomago, dava-me pontapés no tornozelo… Um artista.
Entre os jornalistas argentinos são frequentes os aplausos às trapaças atribuídas a Carlos Bilardo, por ter sabido executá-las com habilidade e com bons resultados. Segundo dizem, quando era jogador, picava os adversários com uma agulha e fazia cara de santo. E quando foi director técnico da selecção argentina, conseguiu enviar um cantil cheio de água com vomitivo a Branco, um jogador brasileiro sedento, durante o jogo mais difícil do Mundial de 1990.
Os jornalistas uruguaios costumam chamar jogo de perna forte à falta traiçoeira, e não foi só um que celebrou a eficácia do pontapé de abrandamento para intimidar os rivais nos jogos internacionais. O tal pontapé deve ser dado nos primeiros minutos de jogo. Mais tarde corre-se o risco de expulsão. No futebol uruguaio, a violência foi filha da decadência. Anteriormente, garra charrúa (nr: Charrúas = uruguaios) era o nome da valentia, e não dos pontapés.
No Mundial de 1950, sem ir mais longe, aquando da célebre final do Maracanã, o Brasil perpetrou o dobro das faltas que o Uruguai cometeu. No Mundial de 1990, quando o técnico Óscar Tabárez consguiu que a selecção uruguaia voltasse ao jogo limpo, alguns comentadores locais tiveram o prazer de confirmar que isso não dava bons resultados. E são numerosos os adeptos, e também os dirigentes, que preferem ganhar sem honra a perder com nobreza.
Pepe Sasía, avançado uruguaio, dizia:
- Atirar areia para os olhos do guarda-redes? Os dirigentes acham mal, quando se nota.
Os adeptos argentinos disseram maravilhas do golo que Maradona marcou com a mão, no Mundial de 1986, porque o árbitro não viu. Nas eliminatórias do Mundial de 1990, o guarda-redes do Chile, roberto Rojas, simulou uma ferida, cortando a testa, e foi apanhado. Os adeptos chilenos, que o adoravam e o chamavam de Condor, transformaram-no de repente no mau da fita porque o truque não resultou.
No futebol profissional, como em tudo o resto, o delito não tem importância se o álibi for bom. Cultura significa cultivo. O que cultiva em nós a cultura de poder? Quais serão as tristes colheitas de um poder que dá impunidade aos crimes dos militares e ao saque dos políticos, e os transforma em façanhas?
O escritor Albert Camus, que foi guarda-redes na Argélia, não se referia ao futebol profissional quando dizia:
- Devo tudo o que sei sobre moral ao futebol.»
In.: GALEANO, Eduardo - Futebol ao sol e à sombra. 1ª ed. Lisboa : Antígona, 2019. pp. 221-224