De pedra e cal - 2ª parte Formação de Elite, por João Nunes
A primeira parte desta conversa com João Nunes, encontra-se aqui.
Na época 2013/2014, integra a Escola Luís Figo Winning League, Pequim, China. Como é que se chega à escola de Luís Figo? É verdade que Luís Figo escolhe cada treinador pessoalmente? Recruta preferencialmente nos nossos (Sporting) quadros?
Foram o Senhor Aurélio Pereira e o Senhor António Fonte Santa, duas ilustres figuras do mundo de futebol, uma da parte do Sporting e outra da parte do Benfica, que me referenciaram ao Professor Joaquim Rolão Preto.
Numa fase inicial, o Luís Figo tinha uma palavra dizer na contratação do candidato. Privávamos algumas vezes com ele, ia lá ter connosco. Depois as coisas começaram a crescer e ele deixou de conseguir entrevistar toda a gente ou estar com toda a gente. Até porque a Winning League chegou a ser a maior Academia de Futebol do Mundo, estava representada por toda a China. Também é verdade que havia uma ligação óbvia ao Sporting Clube de Portugal, até porque o Professor Joaquim Rolão Preto foi campeão pelo Sporting, conhecia muita gente no Sporting. O Luís Figo, é o que se sabe. Mas foram treinadores de muitos sítios, não foram só do Sporting. Estamos a falar de um universo de mais de 90 treinadores. Mas no início, sim, fomos escolhidos a dedo, digamos assim. Para além de mim, numa fase inicial, foram para a China o Gonçalo Monteiro que hoje fala para a SportTV, o Vítor Valente, que foi guarda-redes no F.C.Porto, o Nuno Marques, treinador no Casa Pia, o André Venâncio, que foi treinador d' Os Belenenses e que também esteve ligado às escolas da Academia Sporting e o Ricardo. Fomos para a China, recrutados pelo Joaquim Rolão Preto.
Que diferenças encontrou entre o que se faz em Portugal e o que se faz na China?
Antes de mais, dizer que guardo o Professor Joaquim Rolão Preto no coração, é uma pessoa extraordinária, tenho-lhe uma enorme amizade (desenvolvida na China). Era o Director e Coordenador técnico da Winning League e, claro, foi escolhido pelo Luís Figo.
Agora, já há alguma cultura de treinadores portugueses na China, mas na altura, não havia.
Quanto às diferenças: as da própria cultura do país e mesmo da cultura desportiva. Aqui [em Portugal] podes ir pela descoberta guiada, lá é difícil ires pela descoberta guiada. Se eles não sabem o que é futebol, como é que eles vão descobrir alguma coisa? Vão guiar-se pelo quê? Não conhecem… Começas a trabalhar tudo de base, inclusive os limites e as regras do jogo porque nem isso sabem. Atenção que estou a reportar-me à altura em que lá cheguei, não ao momento actual. Com a chegada dos ocidentais, as coisas desenvolveram-se a um ritmo alucinante no futebol (porque as coisas na China, desenvolvem-se a um ritmo alucinante) pelo empenho e dedicação dos chineses. A verdade é que são muito pouco maleáveis, são muito rígidos no seu pensamento, pela sua forma de estar, pelo próprio sistema de ensino que privilegia memorização e não tanto a compreensão. Mas o facto de serem muito dedicados, dava-nos algumas vantagens. Ainda assim, só faziam aquilo que nós queríamos. Ora, o jogo, é uma coisa dinâmica e que implica iniciativa individual, autoconfiança e não podemos andar só à espera das ordens do treinador. Para eles isto era um problema. Parte táctica, em que não há surpresas, sem problema. Mas o jogo de futebol não é isto. É uma resolução contínua de problemas, com equilíbrios e desequilíbrios constantes num determinado espaço e tempo com uma estratégia comum que objectiva a vitória. É preciso resolver os problemas que surgem.
Em que é que a experiência na China (para além da Escola Luís Figo, foi coordenador da Z-Team em Guangzhou e da GDFC também em Guangzhou) mudou a sua forma de olhar para o futebol de formação?
Em Portugal, conseguia intervir junto de um atleta através do estímulo verbal. Lá, isso não acontecia. Tive de descobrir muitos exercícios que levassem a determinados comportamentos, fez-me pensar muito mais nos exercícios por não ter a ferramenta verbal à minha disposição. Como sou estudioso, pensei muito sobre o assunto. Tinha um problema que era a língua/comunicação, então foquei-me na solução ‘tipo de exercício’ a realizar. Foco-me sempre nas soluções. Servi de modelo muitas vezes, fazia eu os exercícios para que eles percebessem o que queria, participei muito no treino em termos de acções, tocava muito nos atletas e explicava ao pormenor o que fazer.
Debrucei-me muito sobre a própria cultura chinesa, estudei-a e tenho consciência de que mudei a minha forma de estar. Cheguei a Portugal uma pessoa muito mais calma, muito mais serena, a ver o mundo com outros olhos, a não acreditar só naquilo que me dizem, a sentir na pele que existem outras formas de treinar igualmente correctas. Convivi com ocidentais de muitas nacionalidades: ucranianos, eslovacos, russos, venezuelanos, brasileiros, colombianos, mexicanos - todos eles treinadores -, muitos ingleses, muitos espanhóis.
Vim da China muito mais rico e muito mais treinador. Tinha uma idade diferente. China para mim, significa muito estudo, muita experimentação. Muitos desafios, mas posso dizer que tive sucesso na China. Deu-me oportunidade para pensar em futebol 24 horas por dia, durante 5 anos.
Vim um treinador muito melhor, mas já fui para lá com uma grande bagagem.
Depois de na época 2016/2017 ter sido coordenador da GDFC, regressa a Portugal e passa a profissional de recrutamento Sporting Clube de Portugal, para, na época 2018/2019, assumir funções de Director de Recrutamento e Director Técnico da Academia Sporting Clube de Portugal - Algarve, cargos que ocupou até 30/06/2020. Como é que surge este convite?
Ainda eu estava na GDFC, quando recebi o convite. Surgiu porque reconheciam-me competências, esclareceram que seria um projecto de continuidade e que supunha integrar os quadros do Sporting - algo que não veio a acontecer, como nós sabemos. Disseram-me que tinham a certeza de que faria um bom trabalho nas AFS e que poderia aspirar a integrar os quadros do Sporting Clube de Portugal no âmbito das AFS. Esclareceram logo que se tratava de um trabalho de recrutamento, de trabalho com meninos muito talentosos. Ao saber que ficaria a trabalhar com o Paulo Moreira, então, foi uma alegria, fiquei mesmo muito contente, foi um estímulo adicional. Saber que voltaria a estar perto do Paulo, fez-me sair da China para o Sporting Clube de Portugal, este grande clube e no âmbito deste grande projecto. Foi por ser o Sporting Clube de Portugal mas também, e muito, as pessoas com quem ia trabalhar. Só tenho de agradecer ao Sporting Clube de Portugal pela oportunidade.
Sobre a sua saída da AFS – Algarve, o que pode dizer-nos?
Que me sinto injustiçado. Em termos de números, a AFS – Algarve é a que apresentou melhores resultados. O meu contrato não foi renovado sob o argumento de que acreditam que são capazes de fazer melhor. Se são capazes de fazer melhor, por que motivo é que nenhuma das outras AFS apresentou melhores números? E o coordenador das outras quatro, quem é? Têm o coordenador que tem quatro e optam por não renovar com o coordenador que tem uma, e apresenta melhores resultados do que as outras quatro AFS juntas. As outras AFS estão inseridas em grandes centros populacionais e com um número enorme de praticantes de futebol. Não falta por onde escolher.
Acho que foi uma decisão incoerente, não encontro lógica na justificação. Achamos que conseguimos fazer melhor (foi o que me disseram), mas optamos pelo coordenador que fez pior (o que teve 4 AFS a seu cargo e nenhuma se aproximou dos meus resultados). Foi o que aconteceu e levou à não renovação do meu contracto de trabalho.
Trabalhei sempre com o meu mérito, não me socorri nem de estratégias nem de estratagemas para subir. Sim, choquei com algures clubes, porque queria os melhores jogadores para o Sporting Clube de Portugal. No início de um projecto, tu tens de ter jogadores e eu quis ter os melhores e para isso tive que chocar. Mas ao fim de três anos, já tens jogadores que não subiram para Alcochete e já tens jogadores para dar a esses clubes e esses clubes agradecem-te porque recebem jogadores formados por profissionais de excelência. E esses miúdos são mesmo muito bons, só não atigiram ainda o nível exígivel para enviar para Alcochete. Muitos deles, vão aparecer mais tarde.
Posso dizer-te que senti-me injustiçado pela Direcção da Academia. É verdade que houve muitos movimentos pró João Nunes, sócios, encarregados de educação, núcleos. Eu, fui claro: não devem nada ao João Nunes. O João Nunes fez o seu trabalho. Os números falam por si. Isto, é futebol. A Direcção fez uma escolha. Errada, a meu ver. Pode-se dizer que é uma questão de estratégia, mas que estratégia é esta? O que está bem, muda-se? E fica-se com o que está mal? Acho que não faz sentido. Acho que não foram humildes, que não pensaram fora da caixa.
Há quem tenha competências, que pensa fora da caixa e obtenha bons resultados. É este pensar fora da caixa que pode ser a reviravolta no marcador. É com pessoas que pensam fora da caixa que o Sporting Clube de Portugal pode recuperar a hegemonia do passado. Ou fazemos diferente, temos vontade e ambição, ou então vamos continuar na mesma. São pessoas como o Senhor Aurélio, talentosas e que pensam fora da caixa, que fazem o Sporting aquilo que ele é em essência.
Se continuarmos na mesma linha, na linha dos outros, os outros acabam por ganhar porque têm mais dinheiro do que nós.
Este caminho, com a excepção do período dos Aurélios, não tem sido dos mais interessantes. Fomos tendo algum sucesso, mas não à altura da grandeza dos pergaminhos deste Clube. E se o tivemos, devemo-lo ao Departamento de Recrutamento, ao Senhor Aurélio Pereira.
Agora temos mais umas ferramentas que são as AFS, contra tudo e contra todos. Foi muito difícil lançar as AFS, contra alguns lobbies instituídos dentro do Sporting Clube de Portugal mas não gostava de falar sobre isso. Elimina-se o coordenador cuja AFS melhores resultados apresenta, para quê? Para voltar ao quê? A uma estratégia que é pessoal ou é do Clube? Isso é o que as pessoas têm de definir.
Quando chegámos ao Algarve, o C.F.T. só tinha duas equipas no patamar mais baixo: uma de Benjamins e uma de Infantis.
O FCP tinha as equipas que pagavam para ter formação (dentro da lógica EAS) e tinham aquilo a que eles chamam ‘Porto Elite’ (o correspondente às nossas AFS) e neste último, tinham Traquinas e Benjamins.
Ora, estratégia minha ao iniciar? Resolvemos ter – logo no primeiro ano – 1 de Traquinas, 1 de Benjamins e 1 de Infantis. O objectivo foi assumidamente anteciparmo-nos um escalão ao Benfica (que tinha Benjamins e Infantis). Entretanto, a meio da época, antecipámos logo os meninos de 2012 [Petizes, à data; ter em consideração o ano de inauguração, 2018]. No entanto, os Petizes (2011/2012), não tinham competições oficiais, tiveram apenas alguns torneios não oficiais.
A verdade é que ao anteciparmos a captação de alguns petizes, no ano que passou, o C.F.T. tratou de imitar-nos, porque percebeu como nos tínhamos antecipado e assim ganhado o mercado.
Assim, ficámos com duas equipas de Traquinas, 2012 e 2011, uma equipas nos Benjamins, a de 2009 e a de 2010 e uma equipa de Infantis (2008 e 2009). A meio da época, comecei logo nas captações dos meninos de 2013.
Todos os nossos meninos competem sempre com meninos mais velhos: um ou dois anos mais velhos.
Apesar de nos terem copiado a estratégia, nós conseguimos ser (ainda) mais competentes e criámos estratégias para dificultar-lhes novamente a vida... tínhamos um plano que foi totalmente por água abaixo... [não foi implementado]
Por experiência própria, sei que se não nos anteciparmos e andarmos a discutir um atleta ao mesmo tempo que o SLB, ganham-nos pela estabilidade e por terem sido campeões há pouco tempo. Os miúdos viram e, para além disso, têm muito mais dinheiro do que nós.
Então eu crio estratégias novas para antecipar cenários e ter os atletas antes - e ter a oportunidade de os fidelizar ao SCP – e deixam-me cair o projecto!? Falo de um projecto completamente pensado para os Encarregados de Educação, que visava aumentar o grau de satisfação dos pais perante situações como a ‘despromoção’ (que não é) dos meninos a outros escalões para trabalhar aspectos muito específicos e outras estratégias mais que não gostaria de revelar.
O que é importante é que eu com exactamente o mesmo orçamento das outras AFS, pus mais atletas na Academia e tinha o dobro das equipas. E tinha-as para ter mais opções de escolha. E nunca ultrapassei o orçamento, aspecto de que as outras AFS não se podem gabar. Os meus números, são melhores do que os números das outras 4 AFS juntas.
Já disse que não sou um falso humilde… o meu trabalho foi exemplar e um estudo de caso em matéria de gestão e de treino de talentos.
E mesmo assim não chegou para convencer o desconhecedor (Alto Rendimento) Paulo Gomes (Director da Academia). Devo salientar que acho que a Direcção do Clube (/SAD) tem boas intenções, mas não sabem desta área em pormenor – nem têm de saber – e não estão rodeados de todas as pessoas certas.
Fiquei triste, sinto que foi uma saída injusta e sem que as pessoas percebessem porquê. Na hora da despedida, resta-me o consolo de saber que as pessoas do universo Sporting Clube de Portugal, sabem que o João Nunes foi um profissional de excelência.
Quem são as suas referências no treino de formação e no treino de séniores?
No treino de formação, para ser sincero, tinha uma ideia muito própria sobre o que era o treino de formação, tal como já expliquei, vinha de ser um autodidacta, de ter lido muito, de ter pesquisado, de ter feito a minha própria metodologia, mas eram ideias avulsas, chamemos-lhe assim, até ter ido estagiar no Sport Lisboa e Benfica. Foi aqui que encontrei uma pessoa de quem fiquei fã no primeiro treino e que revelou ser todas as minhas ideias, mas organizadas e com método. Com forma, brilho e espectáculo. Falo do Professor António Fonte Santa. Se há alguém de quem posso dizer que o meu treino tem muito, é do Professor António Fonte Santa (apesar de ele ser dos meus tempos na Geração Benfica) mas é uma pessoa inovadora e eu gosto de pessoas assim. A linha era aquela em que eu acreditava e aquela que eu consegui perceber que se encaixava quase como um puzzle que eu idealizava. A partir daqui, fui afinando a minha própria metodologia mas com assumidas influências de Silveira Ramos até mesmo o Professor Jorge Castelo (foi meu coordenador 6 anos). Bebi de muita gente. Mas o Professor António Fonte Santa, foi aquele que mais me motivou.
Silveira Ramos, depois de ler o livro Da rua à competição e por falar com ele algumas vezes, também.
Nos séniores, acho que ninguém fica indiferente a José Mourinho que marca uma mudança. Tem um mérito enorme. Mudou todo um universo futebolístico.
Mas Marcelo Bielsa, pela sua irreverência e vontade. Muito à imagem de uma causa, e eu gosto deste tipo de treinadores que são corajosos, de causas, que são muito emocionais, que envolvem muito as massas. É um revolucionário, um louco.
Jurgen Klopp, também. Pela forma agregadora e pela forma muito apaixonada de ver o jogo.
Atraem-me mais as pessoas que são inovadoras.
O Jorge Jesus tem um mérito enorme. Uma pessoa que não tem formação académica a ajudá-lo mas que consegue fazer o que ele fez. Pelo seu querer, pela sua vontade, por ser um autodidacta, por ser uma pessoa capaz de se superar.
Eu preciso de perceber, gosto de estudar ao pormenor os clubes, as estratégias, as dinâmicas. Aprender com os outros, claro, mas o que mais me estimula é fazer por mim, ser autodidacta.
Recusou treinar equipas séniores por que motivo?
Optei por formação porque gosto muito de crianças. Adoro ensinar. Adoro ensinar futebol. Estou certo de que um professor de futebol, num ano, tem mais influência no desenvolvimento de uma criança do que um professor da escola tem em seis. Depois, por perceber que a maior parte dos treinadores pensava mais em séniores, mas a qualidade do futebol sénior, depende da qualidade do que se faz… na formação. Os convites para treinar séniores continuam a surgir, mas eu preferi ficar na formação também para ter uma especialização.
Estive 6 anos n’ Os Belenenses, passou por lá Jorge Jesus, tive essa sorte; privei com o Rui Jorge nos Juniores, o Romeu nos juvenis, o Filgueira, o Bruno Pinheiro que também era professor. O Paulo Moreira também lá estava. Tive a sorte de perceber este caminho até ao futebol profissional, até aos séniores.
Ganho um campeonato no momento em que um jogador meu pisa pela primeira vez um relvado como profissional. Vamos falar de um jogador nosso, não vamos falar dos dos outros… quando o Bruno Paz se estreou pela equipa principal, foi um orgulho enorme. Aí sim, ganhei um campeonato porque tive uma influência muito grande na formação do Bruno Paz. Esteve comigo n’ Os Belenenses e fui eu que o encaminhei, digamos assim, para o Sporting. Quase que o desviei que ele já estava noutro lado… [outro lado da 2ª Circular; as inscrições pelos dois Clubes entraram ao mesmo tempo e ficou 3 meses sem jogar]
Afonso Santos, geração 2007
Que conselhos daria a alguém que quer vingar como treinador de formação?
O conselho que dou a um treinador de formação: sensibilidade para crianças, conhecimento das etapas de crescimento, perceber as sociedades e suas evoluções, perceber as diferenças culturais e ser muito trabalhador.
Ser treinador de formação tem mais de transpiração do que de inspiração.
Não utilizar os jogadores como degraus à ascensão como treinador e acima de tudo perceber que é uma passagem na carreira do jogador e que temos de saber sair na hora certa para eles poderem continuar a evoluir e voarem sozinhos.
Ser conhecedor profundo do futebol e do meio futebolístico.
Ao cabo destes anos de experiência acumulada, o que é que mudaria no futebol de formação em Portugal?
Claramente, a forma como se olha para o futebol de formação. O futebol de formação tem de ser visto como uma mais valia. A qualidade do futebol infanto-juvenil influencia directamente a qualidade do futebol sénior. Posto isto, e posto que há um grande abandono da prática desportiva do futebol, temos de perceber que o futebol não se faz só em Lisboa, não se faz só nos grandes centros e nas grandes cidades, como Portimão, como Faro, como o Porto, como Aveiro. Faz-se também no interior.
Mudava já os cursos de futebol. Porque repara, numa aldeia, onde existam crianças, pode haver um talento. É a pessoa que sai do seu trabalho, que não vai ganhar nada, que vai envolver as crianças e vai pô-las a praticar desporto. Pode estar ali um Cristiano Ronaldo, como estava na Madeira. É essa pessoa, que não ganha nada a treinar os meninos, que não vai pagar 700€ para ter o curso de primeiro nível. A meu ver, a Federação Portuguesa de Futebol, fazia um bem enorme ao futebol de formação se os cursos de formação não fossem pagos e fossem dados nas autarquias, nas juntas de freguesia, porque no futebol de primeiro nível, é preciso conhecimento. Então, esse conhecimento deveria ser “dado” e não pago. Estamos a falar de um curso que custa 700€ e demora 2 anos a tirar. É algo que não me cabe na cabeça. Ninguém com o primeiro nível vai treinar equipas séniores, portanto se vão treinar meninos, jovens, como é que vão pagar 700€? Eles não ganham nada… Como estamos, vai haver um abandono. Não vai haver treinadores, haverá seguramente menos praticantes. Se há menos praticantes… o futebol fica mais pobre. Eliminava o pagamento. Devia haver um curso para principiantes e para pessoas que quisessem treinar, que fosse financiado pela Federação e pelo Estado.
Quanto aos jogadores de elite: mudava a forma de treinar. Nós vamos muito aos princípios de jogo quando devíamos estimular e potenciar comportamentos e atitudes que numa altura mais avançada – dos 14 anos para cima – eles sim, permitem potenciar os princípios de jogo.
Também mudaria o modelo competitivo. Se uma criança jogar um jogo do campeonato, não chega. Poderia fazer-se o campeonato na mesma, mas com 2 ou 3 jornadas num dia. Não acredito que um menino tocando na bola 5 minutos, evolua qualquer coisa. São convocados 12 meninos, portanto se fizermos as contas, um menino que joga meia parte, joga 25 minutos, logo está 10 minutos dentro do centro de jogo, portanto, toca na bola durante 5 minutos. Tem a bola nos pés e toda a gente está a dizer para ele passar. Um menino não evolui nada num jogo, tem de fazer muitos mais jogos para evoluir alguma coisa. Portanto, muitos mais jogos, muito mais competições e convívios, isso sim.
Para os mais distraídos, sim, é o nosso (AFS- Algarve) João Afonso, nascido em 2010 e um outro jovem talento que encanta por Manchester (e não só)
A qualidade da formação Sporting, está em declínio?
A formação do Sporting não está em declínio.
O que te posso dizer é: o que provoca algum abrandamento na evolução é a constante mudança dos directores e com eles as mudanças de algumas das ideias. Não acontece propositadamente da nossa parte, mas sim por meio de um processo normal de adaptação. A (nova) directoria, tem de adaptar-se a uma estrutura complexa que é a da formação de atletas.
O pior está no facto de que quem chega, a cargos superiores, pensa em mudar mas não sabe mudar. Ou melhor, não sabe o suficiente para saber mudar bem. O Sporting Clube de Portugal, tem gente muito, muito competente nos seus quadros. Pessoas que sabem muito sobre formação, sabem muito sobre detecção e recrutamento de talento.
Para se saber sobre formação temos de estar, pelo menos, três anos ligados a esta máquina. Para evoluir, para corrigir o que está menos bem, é preciso experiência, porque quem vem de novo vai facilmente cair nos erros que nós já sabemos que o são, dificilmente consegue ‘'pegar de estaca’' nas sinergias que já estão estabelecidas.
Quem não trabalha no Sporting Clube de Portugal, não tem ideia da dimensão e complexidade que é a estrutura de formação de um clube com a dimensão do Sporting. O Departamento de Recrutamento, é uma estrutura com muitos anos, com falhas – é verdade – mas também com virtudes. Mas é um departamento em que podemos dizer que a máquina está oleada, porque tem os profissionais escolhidos pelo Mestre Aurélio Pereira. O que quero dizer é que tem de haver uma evolução constante. Se estivermos sempre a mudar peças, o resultado do processo não é sempre o mesmo. É precisar haver continuidade, para que se estabeleçam processos estáveis. Quem já lá está [no Sporting], é excelente naquilo que faz e está em constante evolução.
Os atletas que chegaram agora à equipa principal, não chegaram agora à formação. Eles já estavam na Academia quando eu lá estava. Saiu uma notícia sobre os colchões e que a formação estava ao abandono mas a verdade é que algo se fazia bem. Podia-se era melhorar. Mas muita coisa, foi bem feita. E foi bem feita, em sacrifício, em superação, e sem os recursos que outros clubes têm à sua disposição, digo-te eu com conhecimento de causa. Estes colaboradores Sporting Clube de Portugal, fazem milagres. O investimento, até existe… mas se ele não é canalizado para o sítio certo, aí sim, temos problemas. O que é que sucede? Está a pedir-se a um colaborador que faça um sacríficio – que ele faz – mas não nos superamos para sermos campeões mas para estar sempre ali na mediania. E isto, não chega para profissionais desta craveira, que dão tanto, nem serve para o Sporting Clube de Portugal. Nós não temos de estar a lutar para estar a disputar com os nossos adversários. Nós temos de ter – em todas as dimensões – condições para os superarmos. Isto, é que é a ‘Glória’.
Os verdadeiros profissionais do Sporting Clube de Portugal, não são os das Direcções. São as pessoas que estão ao serviço do Sporting Clube de Portugal, todos os dias. Mas estão verdadeiramente ao serviço do Sporting Clube de Portugal.
Quase todos os candidatos à presidência do Sporting usam a bandeira da formação, mas passados uns meses parece que a formação passa para segundo plano, quando deveria ser uma aposta constante de todas as Direcções e de todos os Sportinguistas. É como se fossem os nossos filhos.
A formação no Sporting Clube de Portugal não está em declínio. Ela não está é alinhada “com o resto”. “O resto”, está sempre a mudar. E as mudanças [formação], desculpa lá a insistência, têm de ser impostas por quem sabe.
O melhor de trabalhar para o Sporting Clube de Portugal, foi?
O melhor, foi descobrir que existiam profissionais no Sporting que me proporcionaram a oportunidade para expor o meu trabalho, as minhas características, sem ser condicionado. E eles conseguiram conduzir-me para aquilo que é o sucesso de um todo, que é o Sporting Clube de Portugal. Muito feliz por ter conseguido conquistar as pessoas com base no meu trabalho e por saber que não há uma pessoa que não me reconheça competências. Fui muito feliz e aprendi com todos, da senhora da cozinha aos seguranças.
O departamento de Recrutamento ensinou-me muito. Fez-me crescer muito, na forma de ver o jogador do individual para o colectivo. Saio riquíssimo do Sporting Clube de Portugal.
Este clube merece todo o meu respeito e admiração, vou ser grato para sempre, as pessoas que estiveram comigo, deram-me muito. As Direcções passam, mas há pessoas que se mantêm e que são preciosas. É o que levo de melhor.
Disse-nos ‘até sempre’ ou ‘até já’?
Bom, eu sou um profissional do futebol, estou sujeito a convites, é disto que faço vida. Espero que seja um ‘até já’, mesmo que esteja noutro clube, espero que se equacione sempre o meu regresso ao Sporting Clube de Portugal. Claro que depende das condições, como é normal, sou um profissional. Mas o que eu gostaria de dizer é que enquanto estive no Sporting, estive para servir e ao serviço do Sporting Clube de Portugal. Continuarei a fazê-lo, até estar ao serviço de outro clube. Quando estiver noutro clube como profissional (Lusitano de Vila Real de Santo António)**, deverei toda a minha fidelidade a esse clube. Estou ao serviço do futebol e, por isso, de quem me contrata. Claro que tenho um carinho especial pelo Sporting Clube de Portugal o que leva a que, da minha parte, as negociações para ir para o Sporting gozem de um estatuto privilegiado. Não esqueço tudo o que as pessoas que servem o Sporting me deram e contribuíram para a minha formação. Para mim é sempre, e espero que da parte do Sporting Clube de Portugal, também, um 'até já'.
Há alguma coisa que gostaria que lhe tivesse perguntado e não perguntei?
Sim. Recrutamento. Gostaria que me tivesses perguntado sobre a importância do Departamento de Recrutamento.
Força, conte-me tudo!
É fundamental por ser o momento da escolha da matéria-prima para ser trabalhada. É descobrir o diamante para depois lapidá-lo. Mesmo com um diamante, se usares um martelo e não as pinças e martelinhos pequeninos, não consegues tirar o melhor do diamante, o máximo que consegues é pó de diamante. O Departamento de Recrutamento detecta o diamante, ele só pode ser trabalhado se for detectado.
É fundamental saber definir o que é um 'talento' e um 'projecto de jogador'. É isto que o Departamento faz. Agora fala-se muito em tamanho, mas tamanho é um factor diferenciador. Mas o facto de, por exemplo, ser muito alto, não quer dizer que aquele menino venha a ser jogador de futebol. É um factor diferenciador, como o é a velocidade. Todos nós queremos jogadores que sejam muito rápidos, assim como queremos um jogador muito técnico, muito criativo, um jogador imprevisível.
Não nos podemos esquecer de que estamos a escolher jogadores para o Sporting Clube de Portugal, estamos a escolher jogadores para a Liga dos Campeões. O objectivo do Sporting é sempre esse, logo, é sempre para essa fasquia que temos de trabalhar. É para aí que nós no Departamento de Recrutamento trabalhamos, é para aí que projectamos o nosso trabalho. Quando trabalhamos para outros emblemas que não o Sporting Clube de Portugal, então aí, sim, já olhamos para o ‘rendimento’, a presença destas características altamente diferenciadoras não é um factor tão importante como é para nós.
Depois dessa detecção, vem a Avaliação. É realizada por elementos do Sporting Clube de Portugal que conhecem os meninos de Norte a Sul. Gostaria de dizer que são profissionais que viajam muito, que vêem muitos jogos e que têm um conhecimento geral dos meninos que estão nos nossos quadros.
Estes meninos passam depois por vários níveis e vários níveis de observação integrada. Ou vão a um treino integrado já com equipas de competição ou vão fazer um jogo particular em competição ou são inseridos num contexto de captação, em que juntámos os meninos que nós vimos e analisámos ao longo de um período de tempo e são os melhores e depois, entre eles, fazemos um filtro dos melhores.
Depois então, vem o processo de ‘Convencimento da Família’, para que queiram ficar no Sporting Clube de Portugal. Pode soar estranho, mas não se esqueçam que nós estamos a disputar meninos com o Benfica, o Porto e até o Braga. Os outros clubes também têm profissionais, também têm gente que sabe muito disto. Não nego, é uma fase do processo que dá muito trabalho e ainda dá mais trabalho quando… não somos campeões há "20 anos". Muitas estratégias… Detectar dá trabalho, avaliar dá trabalho, convencer dá muuuito trabalho. Mesmo muito trabalho, sempre em contacto com as famílias a tentar perceber, a fazer valer todos os nossos melhores argumentos, apresentar 'N' cenários à família.
Neste domínio, o Sporting deve muito ao Senhor Aurélio. O know how refinado que temos devemos ao Senhor Aurélio Pereira. Respira-se Aurélio Pereira na máquina que é o Departamento de Formação. Não me canso de dizer que o Aurélio Pereira dos tempos modernos é o Paulo Moreira, mas há muitas outras pessoas talentosas no Departamento, nomeadamente: o Rui Casteleiro, o Alex – que apesar de ter saído do Sporting há pouco tempo, é um talento – o Luís Branco, Luís Ramos, o Gabriel, o Simão Mendes, o Bruno Brito – Bruno Brito excelente profissional –, Nuno Mota, João Correia, são tantos e tantos… Mas destacar sempre o Paulo Moreira. Há tantas e tantas pessoas neste Departamento com tantas e tantas capacidades, é difícil estar a nomear todas. O Nuno Mota, um organizador, muito minuncioso e que tem um talento enorme, lidera pela organização, é o engenheiro de todo o Departamento.
Voltando ao processo, depois da ‘Detecção’ (informadores/observação directa), ‘Avaliação’, ‘Selecção’, ‘Convencimento da Família’, vem então a fase da ‘Contratação’. É a fase mais difícil. Acontece ao mesmo tempo da fase do ‘Convencimento da Família’. Fechar e assinar o menino, é a fase mais difícil. Mas, atenção, o trabalho do Departamento de Recrutamento, não se esgota aqui. Nós, no Sporting Clube de Portugal, continuamos a acompanhar o atleta e a família.
Acompanhamento à Família e ao Atleta: são muuuitos atletas. Este acompanhamento tem de ser feito, não vou dizer que 24h por dia, porque são mesmo muitos atletas, mas 24h por dia, nós estamos a fazer acompanhamento dos atletas. Para fidelizá-lo ao clube, porque eles estão sempre a ser assediados/tentados pelos outros clubes – porque eles são os melhores – por isso, é fundamental manter uma presença constante na vida destas famílias. É um trabalho muito, muito, grande. Desde o momento em que se detecta o atleta, até ao momento em que o atleta sai do clube, nós estamos sempre presentes na sua vida. Sempre. Até mesmo depois de saírem do clube, muitas vezes.
Depois deste processo todo, podemos dizer que o Departamento de Recrutamento e a área técnica, chocam muitas vezes. E chocam porque uns querem descobrir talentos novos (recrutamento) e a área técnica quer desenvolver os talentos que tem, ora… se se colocam novos meninos dentro das equipas, muitas das vezes pode ser sentido como estar a pôr em causa o trabalho do treinador, como se ele estivesse a fazer um mau trabalho com os meninos que estão sob a sua alçada… o treinador está ligado emocionalmente aos meninos da equipa. Se eu sou treinador, e há outro da mesma idade que vai entrar ali, se calhar, pode-se estar a pôr em causa o meu trabalho. É fundamental ter uma sinergia bem oleada, para que treinadores se sintam confiantes em relação ao trabalho que estão a fazer e aceitem os novos meninos que os coordenadores decidam integrar. Ninguém quer correr o risco de o próximo 'Cristiano Ronaldo' aparecer do outro lado.
Como estive nas duas áreas, compreendo as dinâmicas específicas da área do ‘Recrutamento’ e da área técnica, profundamente.
Todos os meninos que entram no Sporting Clube de Portugal são excepcionais e vão ser lapidados pela área técnica. Mas será que todos atingem o seu potencial máximo? É que o treinador tem um papel fundamental… tem de saber muito bem como aplicar o quê, no momento certo. No Sporting, trabalhamos para ter atletas do meio da tabela para cima, não do meio da tabela para baixo. Trabalhamos, para ter jogadores de Liga dos Campeões.
Imagem: João Nunes, ao serviço do Sporting Clube de Portugal
**Devo salientar – CAL – que João Nunes fez questão de sublinhar já em momento pós gravação de áudios-resposta, que não seria justo no imediato ir para um adversário directo (SLB/FCP); tem consciência plena de que muitos meninos seguir-lhe-iam os passos mas não deseja ver o projecto no Sporting ressentir-se nessa extensão.
Imagens: todas cedidas por João Gonçalves Nunes