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És a nossa Fé!

Como se o golo fosse só para nós

Aos olhos de um miúdo, não há melhor escola para aprender a ver futebol do que as tardes passadas nos estádios em companhia do pai. Aconteceu comigo. Ainda hoje recordo os nomes de futebolistas antigos que o meu pai ia desfiando enquanto víamos as partidas ao vivo, as histórias que me relatava a propósito dos desafios de outros tempos e as noções tácticas e técnicas do jogo que me ia passando nesses momentos irrepetíveis.

As modas mudam muito, mas certas tradições vão-se mantendo. Para um garoto destes dias, continua a ser emocionante ter a oportunidade de ver ao vivo os jogadores que figuram nas cadernetas de cromos, relíquia que persiste em acompanhar cada menino, temporada após temporada, no decurso das gerações.

 

Artur[1].jpg

Já era assim no meu tempo. Já era assim no tempo daqueles que me antecederam. Ainda hoje recordo a emoção que senti ao conseguir um autógrafo do Jacinto João após um jogo da Taça UEFA contra o Arad da Roménia à saída dos balneários do estádio do Bonfim. Juntei o autógrafo ao cromo do jogador, craque do Vitória de Setúbal, juntamente com o José Maria, o José Mendes, o Guerreiro, o Octávio Machado e o José Torres. E foi com imenso orgulho que o exibi aos colegas da escola.

Além do Sporting, sempre com lugar à parte, outra equipa em destaque nessa caderneta era a da Académica – a equipa dos “estudantes”, como então se dizia. Merecia-me especial admiração, incutida pela arguta pedagogia paterna, por demonstrar que o futebol não era incompatível com os estudos. Com Rui Rodrigues, Rocha, Vítor Campos, José Belo, Gervásio, Manuel António e um tipo que dava nas vistas por ser muito louro. Chamavam-lhe ‘ruço’ e tinha o mesmo apelido que eu. O Artur Correia.

 

Ele e o Rui Rodrigues – um defesa elegante, que cultivava a arte de desarmar sem falta – viriam a decepcionar-me quando se transferiram para o Benfica. Mas fui acompanhando o percurso do ‘ruço’, um lateral de enorme mobilidade, que percorria o corredor direito num constante vaivém e sabia centrar com precisão. Eram dois jogadores que gostaria de ter visto no Sporting.

E acabei mesmo por ver um deles de verde e branco. O Artur, que em 1977 se transferiu para Alvalade. Lá permaneceu três épocas, vencendo a Taça de Portugal em 1978 e sagrando-se campeão nacional em 1980. Um ano de glória, um ano de infortúnio: quatro meses depois do título, jogando já nos Estados Unidos, sofreu um AVC que o afastou para sempre do futebol. Tinha apenas 29 anos. Começava aí uma longa via crucis só agora terminada, quando nos deixou de vez. No ano passado tinham-lhe amputado uma perna – supremo sofrimento para quem, como ele, tão bem jogou futebol.

 

SE226WC5.jpg

Artur Correia com a Taça de Portugal conquistada pelo Sporting (1978) 

 

Lembrei-me do meu pai quando soube da notícia da morte do Artur Correia. Porque o último jogo que vi ao vivo com ele, nas bancadas do Estádio Nacional, foi o único em que o Artur marcou com a camisola da nossa selecção. A 1 de Novembro de 1979, num desafio de qualificação para o Campeonato da Europa do ano seguinte.

Recordo-me perfeitamente. Os noruegueses marcaram primeiro, gelando o estádio. A nossa equipa acusou o golo e andou perdida em campo. Até que o Artur pega na bola lá atrás, avança com ela com uma vontade indómita de virar o resultado, ultrapassa todos os adversários e dispara uma bomba a mais de 30 metros da baliza, num remate muito bem colocado. Empatava a partida, a sorte do jogo virava. Viríamos a ganhar 3-1.

Foi um golo do outro mundo: nunca mais o esqueci. Estávamos na curva sul do estádio, um pouco acima da baliza norueguesa. Abracei-me ao meu pai como nos tempos em que ainda colava cromos na caderneta. E ele abraçou-se a mim como se eu fosse ainda o catraio que antes levava pela mão, de jogo em jogo.

Parecia que aquele golo tinha sido marcado só para nós.

 

Iria tornar-me adulto, depois rumei a outras paragens, não regressei com o meu pai ao futebol - nem em pensamento. Até agora, mal soube que o Artur perdera a  última partida no traiçoeiro campeonato da vida.

Voltei a abrir a velha caderneta, desenterrei os autógrafos do pó do arquivo, imaginei-me a falar com uma remota voz infantil. E senti que o Pai me escutava, de polegar erguido, apaziguando todos os meus receios: “Tenho a certeza de que vamos vencer.”

 

Publicado originalmente aqui

2 comentários

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    Pedro Correia 27.07.2016

    Subscrevo, José. Estes momentos devem ser de unidade entre todos nós. O clubismo fica à porta.
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