Como se constrói uma catedral
(Sporting - V. Guimarães | 44.107 espectadores)
«UMA FORMA INESPERADA, mas certeira, de erguer uma catedral foi a que encontrei num conto de Raymond Carver. Dois homens estão numa sala com o televisor ligado. De repente, faz-se um silêncio na conversa que mantém e ouve-se a voz que vem do aparelho. Fala-se de catedrais. É um documentário sobre catedrais. E um dos homens pede ao outro: "Descreve-me uma catedral." Esse homem é cego. O outro hesita, soma banalidades, diz que são monumentos enormes, feitos de pedra, que são tão altos que precisam de reforços para se susterem no ar, que pertencem a um tempo perdido (…).
O cego ouve-o. E propõe-lhe o seguinte: "Traz um papel e um lápis, deixa que a minha mão fique segura à tua e deslize-a enquanto me desenhas o que é uma catedral." Era um pedido insólito, mas ele não teve coragem de recusar. E assim foi. Primeiro desenhou uma caixa que parecia uma casa. Pôs-lhe um telhado e pináculos também. Acrescentou janelas com arcos e grandes portas.
O cego pediu-lhe ainda que desenhasse pessoas. "O que é uma catedral sem pessoas?" E, após isso, que ele fechasse os olhos e continuasse, sem medo, a desenhar. Como se apenas de olhos fechados se pudesse ver uma catedral. As duas mãos pareciam uma apenas, deslocando-se em silêncio sobre o papel, unidas uma dança errante, como se flutuassem. Ele nunca sentira nada assim. Estava em sua casa. Sabia que estava em sua casa. Mas, de repente, não tinha a certeza de que estivesse ainda ali.»
In.: MENDONÇA, José Tolentino, O pequeno caminho das grandes questões. Lisboa : Quetzal, 2017. p. 111
P.S.: Os 'links' são de minha autoria
Foto retirada do site SuperSporting