Chutado para canto
As touradas mereceram aprovação: já se realizam há um par de meses.
Os espectáculos de humoristas foram aprovados: um deles até contou com a presença do primeiro-ministro numa noite e do Presidente da República na noite seguinte.
Os concertos recomeçaram. Um deles, numa curta série que ainda decorre, assinala o 75.º aniversário de Sérgio Godinho, orgulhoso sportinguista.
Reabriram teatros e cinemas.
As viagens de avião receberam luz verde. Mesmo em aparelhos lotados, durante horas e em espaço fechado, sem a menor hipótese de ali haver distância física (a que uns quantos imbecis ainda chamam "distanciamento social", absurda expressão concebida por alguém sem a menor ideia do que significa o adjectivo social).
Os restaurantes voltaram a receber clientes, embora em mesas um pouco mais afastadas do que antes - algo que já devia ter ocorrido, com vírus ou sem virus, pois em certos lugares bastava estendermos um braço para tocarmos na mesa ao lado.
Os hotéis puderam reabrir - alguns gabam-se até de ter lotação esgotada, praticando preços em consonância.
As praias voltaram a encher-se, excepto aquelas que nunca enchem. E são bastantes, felizmente, ao longo da nossa costa, com mais de mil quilómetros de zonas balneares.
O Autódromo Internacional do Algarve, em Portimão, vai receber entre 23 e 25 de Outubro o Grande Prémio de Portugal, que marca o regresso da fórmula 1 ao nosso país. Com público a assistir, obviamente.
As manifestações políticas - que implicam ajuntamentos, muita proximidade e bastante "calor humano" - puderam ir decorrendo, sem restrições e para todos os paladares: da CGTP, do Chega, dos anti-racistas e dos antifascistas.
A Festa do Avante, devidamente autorizada apesar de decorrer na região do País que apresenta mais elevado risco sanitário, começa amanhã.
Tudo isto - e muito mais - com a devida chancela da Direcção-Geral da Saúde. Só o futebol continua a ser chutado para canto pelo respeitável organismo. Que acaba de anunciar novo adiamento da possibilidade de regresso dos espectadores aos estádios - mesmo num cenário de metade ou um terço da lotação.
A 28 de Agosto, o recomeço das competições futebolísticas com público nas bancadas estava a ser «analisado e ponderado», segundo declarou a directora-geral, Graça Freitas. Ontem, a mesma responsável voltou a enrolar as palavras para anunciar que fica tudo como estava, aludindo ao regresso às aulas, como se uma coisa pudesse confundir-se com outra. Com esta extraordinária declaração, proferida em conferência de imprensa: «Não há nenhum preconceito com o futebol, mas temos de ver o contexto em que estamos. Temos de ver agora como acontece a retoma das aulas porque vai movimentar milhares de pessoas todos os dias, e como é o início do Outono e o início do Inverno no Hemisfério Sul.»
Isto enquanto o inútil secretário de Estado do Desporto balbucia umas inanidades, afirmando-se confiante no regresso às competições nos escalões mais jovens, que têm estado inactivos. «O desporto é essencial para toda a sociedade», soletra o senhor, reencarnando La Palice. Enquanto cerca de 440 mil atletas federados treinam sabe-se lá como e há clubes e até federações em risco.
É preciso dizer isto sem rodeios: futebol sem público é futebol moribundo a curto prazo. Porque os clubes vivem de receitas - e as receitas de lugares nas bancadas, associadas à compra de adereços desportivos em complemento aos espectáculos, é fundamental para a sobrevivência de todas as agremiações desportivas.
Não admira, por isso, que mesmo na rica e poderosa Alemanha os 36 clubes que integram as duas ligas de futebol profissional tenham convergido num plano para o regresso (moderado e condicionado) de espectadores aos estádios a partir do recomeço das competições, previsto para o próximo dia 18. Porque da sobrevivência dos clubes depende a sobrevivência do desporto. E uma sociedade sem desporto é uma sociedade doente.
A DGS devia saber isto melhor que ninguém.