Catar-22 (2)
Este é um postal na sequência deste meu pré-Natal Catar-22. E estou ciente que algo apoquentará alguns adeptos que continuam a ter uma visão servil (ou seja, de servos que adoram a servidão) do mundo do futebol. Esses que reclamam uma fidelidade afectiva dos jogadores aos seus clubes (o célebre "amor à camisola", essa superstição consagrada nos malvados tempos da "lei do passe"). Enquanto estes últimos assumem uma visão empresarial, estipulando preços pela cedência (que nunca "venda") das licenças desportivas desses mesmos jogadores, e desde a mais tenra idade destes. E, inclusivamente, tratam essas licenças em termos económico-financeiros como património. Enfim, se o futebol e seu clubismo é espaço de paixão, não obrigando à reflexão, também não obriga ao mais radical impensamento. Convoca-o, é certo. Mas não obriga a tal. E, nisso, não obriga a que não se apreciem jogadores que não são do "nosso" clube. Ou que não tiveram uma percepção de si próprios como se de item patrimonial alheio fossem. Adiante...
Vi ontem o resumo de meia-hora do Manchester United-Wolverhampton. É evidente que não dá para perceber o jogo como se o tivesse visto na totalidade. E que assistir na tv - sempre atrás da bola - também é menos esclarecedor do que no campo. Ainda assim deu para perceber que o Wolverhampton foi superior. Um domínio que teve como corolário uma vitória no mítico Old Trafford, a primeira em mais de 40 anos. A equipa surgiu com 6 portugueses titulares: José Sá, que se tem destacado nesta sua primeira época no melhor campeonato do mundo, afirmando-se como saudável alternativa ao nosso querido Rui Patrício; Nelson Semedo, a reafirmar-se depois de um salto para o Barcelona, talvez para si exagerado; Rúben Neves, um jogador extraordinário e com uma regularidade impressionante; João Moutinho, um verdadeiro maestro; Daniel Podence, que fez uma jogatana; Trincão, que pouco vi mas que pode estar a passar por um processo similar ao de Semedo. Jogou ainda Fábio Vieira, o jovem avançado, entrado quando ainda se registava o 0-0. No banco estava ainda Bruno Jordão, jogador que desconheço. Na bancada, ainda a recuperar da gravíssima lesão que sofreu há já 8 meses, ficou o esplêndido ariete Pedro Neto. E jogaram também Gimenez e Marçal, que passaram pelo futebol português. No banco, como é sabido, estava Bruno Lage, o treinador já campeão nacional português e que, aquando desse seu período vitorioso, se destacou também pelo seu bom trato, uma elegância e até humor a que estávamos então desabituados e que, felizmente, teve recente continuidade, como bem sabemos.
Do outro lado, neste Manchester United menos, que é o da actualidade, jogou o nosso CR7 e o treinador deixou Bruno Fernandes no banco. Ter-se-á arrependido, fê-lo entrar aos 60 minutos e ele foi o mais perigoso dos jogadores do seu clube. Diante deste painel não pude deixar de torcer pelo Wolverhampton, e não só pela minha habitual tendência para apoiar o "underdog". Como deixar de apoiar uma verdadeira selecção portuguesa, caminhando no melhor campeonato do mundo, um colectivo pejado de futebolistas de diversa origem clubística (Porto, Sporting, Benfica, Braga) com um simpático e competente treinador português?
No final do jogo realço alguns pontos:
a) insisto no que venho aqui dizendo há anos, Rúben Neves é um grande jogador, está há cinco épocas no mais difícil e intenso futebol mundial, brilha no cerne da sua equipa, defende e ataca (é um grande rematador de meia-distância - e ontem ia marcando um golo "de bandeira"). É totalmente incompreensível que não seja, e desde há muito, titular da nossa selecção;
b) João Moutinho, aos 34 anos, depois de uma excelente carreira no Sporting, Porto e Mónaco, tornou-se um verdadeiro símbolo neste histórico do futebol inglês (há algum tempo foi escolhido como o melhor profissional de sempre deste clube com 150 anos). É um grande profissional e um magnífico jogador. Ontem jogou os 90 minutos, pautou o jogo da sua equipa, actuando na pressão defensiva, estipulando o constante contra-ataque, marcando o ataque continuado. E marcou o golaço decisivo aos 80 minutos. E esta sua prestação (tal como a dos outros jogadores) tem sido uma constante ao longo deste campeonato, tal como foi nas épocas transactas. Ou seja, não venham os comentadeiros da bola, os jornalistas desportivos, os bloguistas e seus comentadores, os frenéticos das redes sociais, botar que Moutinho já não tem "pedalada", arcaboiço físico, para jogar na selecção. O que lhe pode faltar, como a qualquer outro, é um verdadeiro enquadramento táctico, uma equipa - viu-se isso muito bem no naufrágio da Luz face à Sérvia.
c) Lage está a fazer um excelente campeonato na sua estreia a titular em Inglaterra (fora adjunto de Carvalhal, outro tipo com um discurso nada abrasivo). Herdou equipa e molde de Espírito Santo, que fez uma belíssima carreira no clube - promoção à Premier League, dois 7ºs consecutivos e um 13º, num ano fustigado de lesões graves nos avançados titulares. E vem desenvolvendo, e não estragando, o que herdou. Um futebol de contenção, jogando argutamente com as armas que tem face a clubes com orçamentos muito maiores, e estando no topo daquilo a que será normal almejar. Julgo que é caso para dizer que os nossos rivais cometeram um erro histórico ao despedi-lo devido a uma época atabalhoada e - ao que constou - alguma instabilidade ou irreverência do plantel. E não é por pirraça, qual "boca" para o lado, que digo isso. Pois esse frenesim da aversão aos treinadores também é histórico no nosso clube. Que seja passado para nós. E que continuem eles assim, é o meu desejo.