“benfiquismo ingénuo mas nefasto”…
Texto de Eduardo Lourenço:
«A consciencialização necessária de um povo amorfo e «desinteressado» politicamente como foi o nosso durante décadas operou-se apenas, e com que superficialidade, no chamado plano «ideológico», mas num confusionismo fatal como era de esperar num contexto de carências sócio-culturais tão denso como o nosso. Tudo parecia dispor-se para enfim, após um longo período de convívio hipertrofiado e mistificado connosco mesmos, surgisse uma época de implacável e viril confronto com a nossa realidade nacional de povo empobrecido, atrasado social e economicamente, com uma percentagem de analfabetismo única na Europa, com quase um terço da sua população obrigada a emigrar, imagem capaz de suscitar um sobressalto colectivo para lhe atenuar os traços mais intoleráveis. Mas o que sucedeu, o que tem tendência a acentuar-se é a reconstituição em moldes análogos da imagem «camoniana» de nós mesmos, do benfiquismo ingénuo mas nefasto com que nos contemplamos e nos descrevemos nos indestrutíveis discursos oficiais e, quando não basta, com a promoção eufórica e cara da nossa imagem exterior que em seguida reimportamos como se fosse de facto a dos outros sobre nós. O estatuto democrático da imprensa portuguesa não alterou hábitos de cinquenta e mais anos [1]. Multiplicou apenas os seus pontos de aplicação. Em vez do encarecimento do tirano omnisciente, reina a bajulação avulsa dos caciques [2] que entre si jogam aos dados nas costas do povo português os poderes e as benesses de que se instituíram herdeiros. A regra do jogo, talvez até mais eficaz que no antigo regime, é a da desdramatização de todos os problemas nacionais. Uma democracia não tem problemas e nós somos uma democracia [3]... Desapareceu mesmo do horizonte o sujeito de qualquer responsabilização séria [4] pelo estado inalterável e, em vários aspectos, piorado [5], de um país que de uma vez por todos nós decidimos subtrair, pelos seus méritos gloriosos de um dia, ao pouco exaltante ofício de o conhecer, descrever e julgar como ele é. De uma maneira mais insidiosa, mas acaso mais corruptora [6] do senso das realidades e da consciência do lugar que ocupamos no mundo (ou que não ocupamos [7]) Portugal tornou-se de novo impensável e invisível a si mesmo. Só de uma maneira exterior, forçados por imperativos brutais de ordem catastrófica, consentimos, mas sempre sob a mais antiga maneira de ser nacional, a de «não cair de cu», consentimos em nos olharmos tais como somos realmente.»
In.: LOURENÇO, Eduardo - O labirinto da saudade : psicanálise mítica do destino português. 9ª ed. Lisboa : Gradiva, 2013. pp. 52-53
Algumas associações que fiz quando li este texto:
1 – Da recolha que Pedro Correia tem feito sobre «As gloriosas capas do jornal "A Bola"».
2 – Deste editorial d’A Bola, assinado por Vítor Serpa que, neste espaço, dei a conhecer.
3 – Destes textos de José Cruz e Edmundo Gonçalves.
4 – Deste texto de Edmundo Gonçalves.
5 – Deste texto de Pedro Bello Moraes.
6 – Das palavras do cardeal D. António Marto, Bispo de Leiria – Fátima, que eu aqui transcrevi.
7 – Desta observação de Rui Rocha.