Amor em tempos de Cólera.
Poucos territórios são mais dados à hipocrisia e ao sentido de superioridade que o futebol profissional em Portugal. Conseguimos essa coisa incrível de sermos dos melhores do mundo a gerar e formar jogadores e treinadores, a descobrir e a transacionar talentos (e até somos campeões Europeus em seleções) ao mesmo tempo que não perdemos uma oportunidade de desdenhar o jogo e a Indústria. Por falar em indústria, há muita gente superior que vive do futebol falado e discutido. Já tínhamos essa inovação de termos políticos, ex-políticos e políticos em pousio a falar de política e a serem pagos por isso e agora temos ainda mais desses políticos e demais opinadores profissionais a serem pagos para dar a sua opinião sobre bola, com a vantagem de poderem ser mais desbragados e apaixonados e (aparentemente) menos calculistas.
Quem é opinador precisa de alvos fáceis. Num país que insiste em ser dos mais pobres da União Europeia, quem sai da norma é por definição um alvo fácil e no nosso mundo da bola o presidente do Sporting é um alvo fácil. Por manobrar no bastidor? Por vender jogadores por um punhado de lentilhas? Por despedir treinador a meio da época? Por ter sido apanhado em escutas de conteúdo heterodoxo? Por ser recordista em comissões a agentes de jogadores?
Não, mas sim por não ter sido campeão num clube que venceu dois campeonatos em 35 anos e não se consolar com essa ideia de forma nenhuma, contagiando milhões de outros sportinguistas nos últimos anos e necessariamente hostilizando os poderes instalados.
Muitas vezes exagerou e muitas vezes foi vulgar na linguagem, mas ninguém como ele lutou pelo clube.
Ajuizar sobre alguém que aparenta estar sob elevadíssimo stress emocional é relativamente simples até para o não especialista. Tudo é, tudo parece asneira, todas as palavras, os atos, as omissões. Dá a ideia que quase nada do que Bruno de Carvalho fez publicamente em relação ao clube nos últimos dias foi a coisa certa. Algumas são tão obviamente erradas que poderiam fazer parte de um manual que abordasse os efeitos do stress sobre a performance de um líder.
É altissimamente provável que esta semana venha a fazer parte destacada da biografia de Bruno de Carvalho enquanto presidente do Sporting, o que é lamentável para o clube, os seus trabalhadores, os seus adeptos e sócios e o próprio. A questão a que muitos já responderam é se chegamos a um ponto de não retorno, em que a confiança entre todos se estilhaçou. Aquilo que se entende dos opinadores é que sim, Bruno de Carvalho “não tem condições” para continuar à frente da SAD e do clube, dado o lastro de disparate (chamemos-lhe assim) deixado. E, chegados aqui, é extremamente difícil discordar com a ideia, ainda por cima no país onde quem sai da norma é detetado e identificado para ser abatido.
Bruno mais do que esticou a corda, mas na verdade no consensual Portugal nunca teve hipóteses. O que levou o presidente de um clube de futebol a este estado de falência emocional deveria dar que pensar. Em especial quando começamos a detalhar as lutas de Bruno de Carvalho em defesa dos interesses do clube. Teria ele razão na questão dos fundos? Do vídeo-árbitro? Da relva do estádio? Em não vender jogadores a eito? Foi ele quem inventou as detenções que a PJ fez noutro clube candidato ao título? Foi Bruno o autor dos gigabytes de e-mails vindos a público e que comprovam que havia mais, muito mais, que saudações natalícias entre agentes do futebol? Deve-se a Bruno de Carvalho haver zero árbitros nossos compatriotas escalados para o Mundial da Rússia, quando a seleção é campeã da Europa e o melhor jogador do mundo é português?
Talvez com tempo, os opinadores possam fazer um juízo mais definitivo sobre as escolhas de Bruno ou talvez possam continuar a fazer pela vida, farejando por outro alvo fácil e consensual, vivendo na sombra da Indústria do futebol que estará certamente purificada com a saída de cena do colérico Bruno de Carvalho.
(publicado no Expresso Diário de 10.04.2018)