Alemanha-Portugal (crónica)
É fácil comentar a posteriori e o teor da análise depende(-me) sempre do resultado final, seja lá qual for a maneira como os nossos lá chegaram. Já sobre o jogo com a Hungria botei na minha taberna: "Como é óbvio contestei com vigor e sageza veterana o pendor conservador do nosso engenheiro seleccionador, antevendo uma deslustrada campanha sob tal "motorista". E elogiei a extrema capacidade do nosso engenheiro seleccionador - sempre avesso à fugaz embriaguês do espectáculo - montando uma equipa tacticamente irrepreensível, delineada para enfrentar os gigantes que se sucederão, e clarividente nas letais e oportunas alterações que decidiu, mostrando que iremos longe sob tal "motorista"." Aparente oscilação devida, claro, à bem sucedida carambola de Raphael Guerreiro aos 80 e tal minutos.
Para o jogo de ontem as minhas expectativas eram sombrias. Não só devido ao tradicional poderio da Mannschaft, já teorizado por Gary Lineker: "Football is a simple game. Twenty-two men chase a ball for 90 minutes and at the end, the Germans always win". Mas também porque Carlos Manuel, notoriamente fora de forma, não foi convocado por Fernando Santos. Ainda assim, e muito devido à influência do meu personal coach Rebelo de Sousa, concentrei-me com afinco para o embate: do Lidl de Nenhures convoquei 2 caixas camarão a cinco euros cada e uma caixa de mines Argus, que se associaram ao bloco Karlsqueel chegado do rival Aldi vizinho, a um pacote de amendoins com casca e a um balde de tremoços temperados oriundos de agremiação local, seleccionados pela restante equipa técnica. Vigorosa estava a maionese mezinha caseira.
As sensações iniciais do jogo foram contraditórias. O inicial golo alemão logo azedou o ambiente, anunciando o algo já esperado, apenas adiado devido ao fora-de-jogo arrancado à unhaca do teutão marcador. Mas logo de seguida o antológico golo do CR7, com arte e engenho surgido do até então pântano luso, veio reanimar as hostes comensais e o espírito de Sérgio Conceição pairou, em tricórnio, sobre a sala. Depois... enfim, já todos o sabemos, o esquerdismo germânico irrompeu, revolucionário, devastando o nosso aburguesado "centrão": os amendoins foram ditos chochos, os tremoços apimentados em demasia, os camarões nada condignos da saudade moçambicana, as cervejas chilras. A própria mezinha afigurou-se já antiga. Ao intervalo houve inflexão táctica, passando-se a privilegiar o recurso ao muro d'Amber Leaf, antes chegado do Continente da vila, comprovando que em dia de selecção não há clubismo comercial.
A segunda parte trouxe novidades televisivas. Jogou aquele rapaz que é um bluff, uma artimanha do Jorge Mendes que o impingiu aos bávaros para favorecer o Benfica, mas que a crise nacional recentemente elevou a D. Fuas Roupinho. E que me lembre também entrou João Moutinho, que "bate bem". E, claro, "se perdermos que se foda", o que é bem verdade, pois "seja o que Deus quiser". Houve outros rapazes que entraram mas já não atentei muito, ocupado em limpar cinzeiros, deitar fora as cascas dos amendoins, tremoços e camarões, lavar a loiça e, acima de tudo, em separar o lixo, por deveres impostos pela sensibilidade ecológica. O jogo terminou e sala e cozinha estavam um brinco.
Sentei-me cá fora a bebericar um café e a minha audiência anuiu no que sentenciei: que em Roma devem ter gostado do que viram pois que grande Rui Patrício! Levou 4 e mais poderiam ter sido, não fora ele. Devem estar ansiosos para receber o verdadeiro "Muro de Marrazes". E - o que só é novidade para deficientes profundos - que extraordinário é o CR7: um golo antológico, "para mais tarde recordar". E nisso não só igualando Klose como melhor marcador de sempre em finais de Mundiais e Europeus, como também igualando o recorde de passes para golo em Europeus, naquilo de reanimar uma bola quase defunta e dá-la ao codicioso Jota.
Depois, e já bebericando o aprazível Queen Margot adquirido em Lidl lisboeta, assisti às declarações de um ror de painelistas críticos. E, já noite longa, decidi-me a deixar curto ensaio sobre a situação nacional, seguindo a metodologia que Silas apresentou nos comentários que fez em directo ao jogo. Ou seja, professando o "como eu digo", assim fiel à omnisciência própria. Como tal começo por considerar que neste Alemanha-Portugal se notou, como eu digo [e já em 3.3.2020], que urge "Rúben Neves (se o Grande Engenheiro abrir os olhos e se deixe de Adamastores ...) nas armadas de João Félix e Diogo Jota, almirantadas pelo Cristão Ronaldo.". E isso era e é óbvio. Rúben Neves é um belo jogador, tem já enorme experiência de futebol intenso, é um excelente trinco que faz jogar e tem uma magnífica meia-distância. Como é que é possível que esteja sentado enquanto joga Danilo? E, pior, quando joga William, esse que já no Sporting me fazia careca devido ao seu constante footing? Quanto mais agora, anos passados e habitante do banco do sofrível Betis? Enfim, são os tais Adamastores a que me referi.
Fernando Santos, na sua crença mariana, não preparou a equipa para este Europeu. Levou a anterior. E isso é notório ao constatar que Palhinha e Neves nunca jogaram juntos, Palhinha, hoje em dia o homem para jogar a 6, é tipo para jogar a trinco-solo. E muito provavelmente desentender-se-á se num duplo trinco com Rúben Neves, que é homem para jogar a 8 [ou 6,5]. E pior ainda se se estreasse essa combinação num jogo decisivo diante do melhor meio-campo do mundo (Kanté é um gigante). Esta dinâmica de meio-campo (a propalada "casa de máquinas") é o crucial e Santos "achou" que não era problema, que estava tudo como em 2016. Vê-se...
Tudo isto assenta num esquecimento construído, o do verdadeiro trajecto desta selecção muito rica em jogadores mas cujos constantes tropeções fizeram que viesse a cair neste "grupo da morte" no sorteio para este Europeu. De facto a vitória de 2016 foi uma sorte espantosa, tipo a da medíocre Grécia em 2004, mas ainda mais, pois com pior futebol. Apenas a inicial euforia e o posterior e constante patrioteirismo nos impediu de sublinhar isso. O troféu seguinte, secundário, mais mascarou isso: foi conquistado com equipas jogando menos empenhadas e com Portugal muito mais solto, dada a menor responsabilidade. E já o Mundial 2020 foi uma campanha desperdiçada, um belo plantel com um futebol pobre, uma equipa equivocada, resultados cinzentos num futebol algemado. Só não viu isso não quis. Ou seja, o que está a acontecer agora não é surpresa. Certo, pode ser que tudo se arranje, uma passagem à fase seguinte, umas vitórias, e pronto de novo o relativo sucesso, e mais agradecimentos e romarias a Fátima.
Mas para que isso seja possível todos querem mudanças na equipa. Sobre as do meio-campo já resmunguei o suficiente. Mas também se clama pela mudança dos laterais. Mandar Nuno Mendes aos 18 anos, e sem experiência de selecção, para travar Mbappé? Este com Pogba nas costas e Pavard a subir que nem um louco? O miúdo é muito bom, e se calhar até arrancaria um grande jogo, mas colocá-lo agora seria um "fezada". Monta-se uma selecção nacional com "fezadas"? Também se pede Dalot - que é mais experiente mas é ainda mais excêntrico à selecção. Estrear o homem num jogo contra a França, decisivo? Mas o problema não são os laterais - por mais que Nelson Semedo não seja o jogador que anunciaram há anos -, são os alas do meio-campo (quais?, existem?). Pois não defendem, não acompanham os laterais. E nisso dá também para perceber um dado: a nossa selecção não tem extremos, não há um tipo a ir à linha. No país de Futre, Figo, Quaresma, CR7, e tantos outros, já não há extremos. Haverá Neto, mas está lesionado. O resto são "interiores", tácticos. Que porventura fintam em raid se jogando com o Appoel ou o Tondela. Mas não num Europeu.
Enfim, passe-se ou não às fases seguintes isto é um colapso de Fernando Santos, por mais simpático que nos seja o "engenheiro do Euro". Em 2004 Scolari engoliu em seco o seu falhanço, deu a mão à palmatória, escondeu isso no discurso imbecilizador que tinha, e a partir da derrota inicial meteu o Porto de Mourinho a jogar. Só lhe faltou a sensibilidade táctica para ganhar a final aos pobres gregos - algo que Mourinho teria feito num piscar de olhos. Mas Santos não tem um bloco pronto a utilizar, devia tê-lo pensado.
Já perorei a minha irritação. E muita dela é porque temos uma escola extraordinária de treinadores e levamos com isto, esta selecção algo amarfanhada, desde há anos. Ainda assim, e porque consciente da minha sageza futebolística e do como ela pode contribuir para o sucesso in extremis da nossa selecção nesta campanha, boto a minha equipa para sacar o ponto necessário diante do campeão mundial: 1) o Grande Rui Patrício; 2) Nelson Semedo; 3) Pepe, Magno; 4) José Fonte; 5) Nuno Mendes; 6) Palhinha; 7) Bruno Fernandes (feito ala direita); 8) Ruben Neves; 9) Cristiano Ronaldo; 10) Renato Sanches (ao centro, para a frente, pois não defende e não é nestes dois dias que vai aprender); 11) Rafael Guerreiro.
Mas é claro que se Fernando Santos insistir na sua ideia e tiver sucesso aqui escreverei: "como eu digo" é de elogiar a extrema capacidade do nosso engenheiro seleccionador - sempre avesso à fugaz embriaguês do espectáculo - montando uma equipa tacticamente irrepreensível, delineada para enfrentar os gigantes que se sucederão, e clarividente nas letais e oportunas alterações que decidiu, mostrando que iremos longe sob tal "motorista"."