A martelo
Entre os dois últimos campeonatos ganhos pelo SCP, que emolduram o nascimento deste milénio, um jogador chamado Martelinho ajudou o Boavista a conquistar o seu primeiro e único título nacional de futebol. Para muitos, o voluntarioso extremo é um ficheiro que a memória já se encarregou de apagar, como o faz cada vez mais assertivamente com aqueles a quem falta o carisma, predicado indispensável à dimensão mítica. Martelinho foi um empregado talentoso, uma simples peça do xadrez. Porque o evoco, então, no meu primeiro post enquanto membro da equipa do És a Nossa Fé? Por razões de ordem diversa: antes de mais porque me disponho aqui, qual Martelinho, a colocar o talento que me possam reconhecer ao serviço de algo maior - o blogue e, claro, acima de tudo, o SCP; depois porque a simpatia com que lembro o jogador e o inesperada que resulta a sua evocação reflectem ambas a sensação que me causou o convite do Pedro Correia, um ex-colega de redacção no Diário de Notícias; ainda porque as festas de S. João já se anunciam e, como bom portuense, também eu conto passar mais uma noite de martelinho na mão; mas principalmente porque, e isto é uma dor de alma para quem ainda se sente jornalista, são cada vez mais as notícias a martelo o que enche as páginas, os ecrãs e o éter dos nossos órgãos de comunicação social. A que hoje me traz aqui é a de dois extremos que se diz quererem jogar no extremo oposto ao de Martelinho: Carrillo e Mané. Daquele, os três diários desportivos quase garantem que se recusa a renovar; deste, um deles chama à primeira página a revelação de que está a "forçar a saída". Ora, Carrillo, como se sabe, nunca jogou a ponta dum corno até esta época, aparecendo e desaparecendo em fogachos inconsistentes que mais não davam do que para lhe detectar um potencial tremendo e lamentar o seu não aproveitamento; caso, na verdade, ele se recuse a renovar, estamos em presença de alguém que cospe literalmente na sopa que lhe foi dada a comer. O SCP teve a paciência de o trabalhar, de insistir com ele, de não o deixar cair, de fazer dele o grande jogador que finalmente prova ser. E a resposta é: agora que estou bom, até à vista. Mané ainda tem de comer muito pão para se alcandorar ao topo, mas, a acreditar nos jornais, quer dar um passo maior do que a perna. À revelia do clube. Em ambos os casos, estas notícias espalham a noção de que o SCP não é um clube-destino, é um clube-passagem. Diminuem o SCP. E, logo aí, têm de ser lidas com o devido distanciamento. O distanciamento crítico de quem sabe qual é hoje a importância estratégica dos jornais no "negócio do futebol" (termo recorrentemente usado e que eu detesto) e como eles a usam. Olhemos um pouco mais em detalhe para a notícia sobre Mané. Na capa d'A Bola ele "força" a saída. Lá dentro, já é o Mónaco que lhe oferece um salário não sei quantas vezes maior que o do SCP. Ou seja, o rapaz não pia, que se saiba. A Carrillo também ainda ninguém ouviu dizer nada de esclarecedor, mas a ordem do(s) dia(s) faz-se com a inevitabilidade da sua despedida. Isto num quadro em que Marco Silva, alegadamente, e desde o Natal, já prepara a nova época noutras paragens. O irónico de tudo isto, se formos a ver, é que se há clube português que tem fugido com dignidade ao fado de ser barriga de aluguer, ele chama-se SCP. E por isso é um exemplo. Podem os jornais espelhar a inveja e o ressabiamento dos outros, tentando de todas as maneiras pegar fogo à casa leonina, no que contam com a ajuda de tantos pretensos sportinguistas. Cada vez mais, a informação fidedigna sobre o SCP é difundida pelo SCP. E a comunicação social tem de se capacitar da sua culpa. A credibilidade está num extremo, a pirotecnia noticiosa no outro. Chamem-me ingénuo, se quiserem: para mim, Mané e Carrillo são dos nossos. Os jornais, esses, podem gastar o defeso inteiro a martelar na mesma tecla.