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És a nossa Fé!

A insustentável inconsequência dos actos

Ontem à noite, após os lamentáveis acontecimentos de Guimarães, choveram naturais recriminações ao contexto discriminativo que levou o maliano Moussa Marega a abandonar o terreno de jogo como forma de produção de um "statement" de um homem perante o racismo. 

 

O problema, o nosso problema, é a inconsequência material desta "excitação" que se apodera de nós nestas ocasiões e nos alerta para a necessidade de sermos solidários com quem ainda sofre com o preconceito rácico. 

 

Basta puxar atrás a caixa de comentários deste e de outros blogues para ser notório que, após a espuma do momento, o quotidiano segue como de costume. Por isso, se for entendido que o primeiro-ministro do país está a caucionar, por omissão, a estratégia de um rival, logo aparecerá alguém - hoje disposto a rasgar as vestes em benefício de Marega - , a epitetá-lo de "monhé". Alguns chamar-lhe-ão hipocrisia, mas creio que essencialmente tudo reside num preconceito que cumpre erradicar.  

 

A maioria das vezes nem nos apercebemos, fazemo-lo de forma inconsciente, mas o preconceito está lá, muitas vezes apoiado num léxico comum, pátrio, que contém inúmeras expressões figurativas e supostamente estilosas que o sublimam. Se calhar, precisamos de mais umas gerações para combater eficazmente isto, até porque a forma como hoje em dia o tentamos contrariar está longe de ser a desejada. Na era do politicamente correcto,  defendemo-nos recorrendo a todo o tipo de eufemismos que tiram genuinidade e autenticidade, frequentemente sendo pior a emenda que o soneto. É disso caso o tratamento por "negro", em oposição a "preto" ou "castanho", quando, no seu étimo, negro refere-se a escravo, ou seja, está nos antípodas do efeito desejado quando a ele recorremos. Já os americanos, por exemplo, criaram a expressão "afro-americano" como se qualquer africano tivesse de ter uma determinada cor de pele, o que acaba por ser um preconceito em si mesmo. (Outra forma inconsciente de racismo é o misto de indulgência e de condescendência que por vezes se ouve e vê quando nos referimos a uma pessoa de pele escura, consequência próxima do período de colonialismo e das diferenças educacionais mais presentes nesse tempo.) 

 

Nestas e em muitas outras coisas gosto de recorrer à infância, uma idade sem filtros nem preconceitos. Nos recreios das escolas, os miúdos não têm receio de tratar as coisas como elas são sem que daí resulte qualquer contrariedade para a outra parte. Para eles, o preto é tão natural como o branco, apenas mais invulgar e como tal portador de curiosidade acrescida. Assim foi na minha geração - a da descolonização - , da mesma forma que hoje o será entre asiáticos (essencialmente chineses) e brancos. É certo que por vezes uma deficiente intervenção parental subverte as coisas e retira a naturalidade que existe numa criança, embuindo-a de um preconceito com que ela não nasceu e levando-nos a assumir alguma crueldade nela, mas tal não retira a minha convicção de que todos temos muito a aprender com a idade da inocência. 

 

Para terminar, cada ser humano é único na sua diferença. Isso é bom, na medida em que cria diversidade, complexidade. Cada povo tem a sua própria idiossincrasia, sem que a raça seja determinante a essa característica. Por exemplo, um americano do Texas não é igual a um americano de NY na forma como vê o mundo e as questões culturais ou religiosas estão muito para além da raça, como o provam os Amish ou Mormons, por exemplo. Da mesma forma, um magrebino de Marrocos, Tunísia ou Argélia estará mais perto da cultura francesa, tal como uma tanzaniano ou queniano da inglesa, ou um líbio da italiana. Às vezes o preconceito reside em fecharmo-nos numa concha, no não termos mundo e não viajarmos ao filtro do outro. Pessoas assim tendem a simplificar a ignorância, rapidamente encontrando respostas acessíveis (e erradas) para questões muito complexas. Se formos abertos, rapidamente concluiremos o óbvio: sendo certo que todos somos diferentes, somos também todos iguais. Seres humanos. Só. Por isso, obrigado ao Marega por nos relembrar aquilo que nunca deveria estar esquecido. 

marega.jpg

4 comentários

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    Pedro Azevedo 17.02.2020

    Obrigado António!

    PS: há um texto do Galeano que explica a origem do epíteto Pó de Arroz que o Fluminense ganhou. Tem a ver com um outro tempo, em que jogadores provenientes das colónias, pioneiros no futebol brasileiro, usavam pó de arroz para encobrir a cor natural da pele.

    Se há luta justa é esta. Não se pode transigir com a desumanidade, por muito que elas às vezes seja semi-consciente ou mesmo inconsciente. A Marta, aí em baixo, colocou a coisa no tom certo.
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    AntónioF 18.02.2020

    «DA MUTILAÇÃO À PLENITUDE

    Em 1921, a Copa América ia jogar-se em Buenos Aires. O presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, proclamou então um decreto de brancura: ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele escura, por razões de prestígio pátrio. Das três partidas que disputou , a selecção branca perdeu duas.
    Nesse campeonato sul-americano, Friedenreich não jogou. Naquela época, era impossível ser negro no futebol brasileiro, e ser mulato era difícil: Friedenreich entrava sempre atrasado no campo, porque demorava maia hora no balneário a alisar a carapinha, e o único jogador mulato do Fluminense, Carlos Alberto, branqueava a cara com pó-de-arroz.
    Depois, apesar dos donos do poder e não graças a eles, as coisas foram mudando. A longo prazo, com o passar do tempo, aquele futebol mutilado pelo racismo pôde revelar-se em toda a plenitude das suas diversas cores. E passados tantos anos é fácil comprovar que foram negros ou mulatos os melhores jogadores da história do Brasil, de Friedenreich a Romário, passando por Domingos da Guia, por Leônidas, por Zizinho, por Garrincha, por Didi e por Pelé. Vinham todos da pobreza e alguns voltaram a ela. Pelo contrário, nunca houve nenhum negro ou mulato entre os campeões brasileiros de automobilismo. Tal como o ténis, o desporto das pistas exige dinheiro.
    Na pirâmide social do mundo, os negros estão em baixo e os brancos em cima. No Brasil chama-se a isso ‘democracia racial’, mas a verdade é que o futebol oferece um dos poucos espaços mais ou menos democráticos onde as pessoas de pele escura podem competir em pé de igualdade. Podem, até certo ponto, porque também no futebol uns são mais iguais do que outros. Embora tenham os mesmos direitos, nunca conseguem competir em condições de igualdade o jogador que vem da fome e o atleta bem alimentado. Mas ao menos no futebol há uma possibilidade de ascensão social para o menino pobre, em geral negro ou mulato, que não tem outro brinquedo além da bola: a bola é a única varinha de condão em que pode acreditar. Talvez lhe dê de comer, talvez ela o transforme em herói, talvez um deus.
    A miséria treina-o para o futebol ou para o delito. Desde que nasce, esse menino é obrigado a transformar em arma a sua desvantagem física, e aprende rapidamente a contornar as normas da ordem que lhe nega o lugar. Aprende a descobrir os truques de cada campo, e torna-se sábio na arte de dissimular, surpreender, abrir caminho por onde menos se espera e livrar-se do inimigo com um requebro de cintura ou qualquer outra melodia da música malandra.»

    In.: GALEANO, Eduardo - Futebol ao sol e à sombra. 1ª ed. Lisboa : Antígona, 2019. pp. 60-61
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    Pedro Azevedo 18.02.2020

    Obrigado, António! Já agora, o Arthur Friedenreich é um dos 5 jogadores brasileiros que ultrapassou os 1000 golos. Filho de pai alemão e mãe brasileira, figura num lote exclusivo onde também constam Pelé, Túlio Maravilha, Romário e o excêntrico Dadá Maravilha, este último autor de célebres tiradas como ‘Não me venha com a problemática que eu tenho a solucionática’, ou ‘Só há 3 coisas que pairam no ar: helicóptero, beija-flor e Dadá’, ou ainda ‘Não há golo feio, feio é não fazer golo’.

    Que tal o António encontrar uma peça sobre esse personagem extravagante? Fica o desafio.

    Forte abraço
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