O meu bom amigo e óptimo colega Guillermo Cabrera Infante detesta futebol, (…), e sempre que me ouve falar dele com naturalidade ou vê que lhe dedico um artigo põe-se a mirar com aquele olhar terrivelmente destruídor e não se priva de me criticar a falta de gosto e conduta irresponsável.
Agora o clube dos meus amores de infância ridicularizou-se diante de toda a Europa. Uns machões derrubaram uma baliza, e não só havia nenhuma suplente em Chamartín, como demorou uma hora e um quarto a trazer outra, de uma forma incompetente e atoleimada. A imprensa alemã cevou-se (o adversário era o Borussia Dortmund), a europeia neutral gozou, a barcelonense deitou sal na ferida sem escrúpulos nem dissimulação. Está bem, tudo mais ou menos merecido. Que o clube dos meus amores de infância continue a sê-lo na minha idade adulta não significa que eu seja cego aos seus defeitos: a actual direcção não me inspira confiança, para falar de uma forma suave; o actual treinador, Heynckes, parece-me sem prespuicácia; e um bom número dos seus adeptos é do pior que há na nossa sociedade, com os seus cânticos e símbolos racistas e nazis e as suas bandeiras franquistas, que não espanholas. Estes iletrados deveriam saber, é claro, que meteram a pata na poça quando se tornaram adeptos do Real Madrid. Como é do conhecimento daqueles que têm memória e há pouco tempo recordou um ressabiado jornalista que dá muitos ares de «vermelho», as pessoas de esquerda e republicanas, os derrotados da Guerra Civil, preferiam o Madrid ao Atlético, apesar do adjectivo «Real» aparentemente contraditório. O Madrid tinha no seu nome o da cidade sitiada e bombardeada, enquanto o Atlético Aviación (como se chamava na sua origem o Atleti) era a equipa dos pilotos franquistas, justamente daqueles que se tinham dedicado a bombardear a capital com sanha. Entre os nossos jogadores houve não pouco «avermelhados», como Del Bosque, ou o guarda-redes Miguel Ángel, ou Breitner o abissínio, ou Pardeza, ou Valdano, e só os triunfos europeus dos anos 50 e 60 levaram o regime ditatorial, com o seu oportunismo, a aproximar-se dele e não o inverso. Que o saibam então os ultras: apoiam a equipa que foi dos perdedores bélicos, mais vale que se inscrevam todos no Frente Atlético.
Mas ao que ia: toda a gente perorou sobre a baliza mas ninguém assinalou até que ponto foi milagroso e admirável que os quase cem mil espectadores reunidos no estádio, a maioria em estado de alta tensão como eu estava em minha casa diante do ecrã quando se iniciava uma semi-final dos Campeões Europeus obrigados a esperar durante setenta e cinco minutos, muitos milhares de pé, sem ter a certeza de que o jogo acabaria por se realizar, em dia de trabalho, com a irritação e a frustração lógicas perante semelhante anticlímax; admirável, digo, é que entre essas cem mil pessoas não acontecesse nenhum incidente em tão longo e oneroso tempo; que as pessoas não se puseram a lutar nem fossem à procura dos ultra sur culpados para lhes aplicar uma sova ou expulsá-los de Chamartín de uma vez por todas; que esperassem pacientemente, limitando-se a assobiar esse fundo sul e a direcção incompetente. Em suma, que não sucedesse nenhuma desgraça como a Heysel e tantos outros lugares. Porque o que eu costumo responder a Cabrera é que o perigo não está no futebol, mas na massa enclausurada, seja qual for o espectáculo. Tendemos a assinalar o pior de nós, e nesta ocasião havia pouco. Mas também houve alguma coisa de bom, e até hoje não li um único comentário como o que agora faço, que alguém se felicitasse pelo alto grau de serenidade e civilidade demonstrado pela maioria dos adeptos da equipa dos meus mais constantes amores.
1998»
MARÍAS, Javier - Selvagens e sentimentais : histórias do futebol. 1ª ed. Lisboa : Dom Quixote, 2002. p. 109-111
No seu título de estreia, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, podemos ler:
«(…)
Finalmente chegou uma altura em que o Sr. Napumoceno considerou que já justificava dar ao armazém a aparência de uma firma. Assim, na parte da frente que sempre destinara a escritório mandou construir uma fachada que logo impressionou toda a cidade pela sua imponência e sobriedade e na qual se lia em relevo, pintado de verde-escuro sobre um fundo branco, as palavras ARAÚJO, LDA. - Import. Export. Porque a grande fraqueza de toda a vida do Sr. Napumoceno tinha sido o Sporting Club de Portugal e por arrastamento qualquer outra equipa que usasse a cor verde. Considerava o verde a sua tara, o seu destino e a sua sorte e disse no seu testamento que a sua filha Maria da Graça ficara a dever-se à saia verde da D. Mari Chica que lhe apeteceu logo levantar quando a viu dobrada sobre a secretária...
(…)»
ALMEIDA, Germano - O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo : romance. 3ª ed. Lisboa : Caminho, 1998. pp. 65-66
«Ainda bem que é o futebol, os jogo e a arte em geral que dilui a essência trágica do comportamento humano. Senão, estávamos em guerra permanente. O jogo é um exorcismo. Esgota-se - ou devia - na vitória e na derrota, aceites como tais, para que não se estrangulem no fim do jogo. (...) O futebol é uma arte. Menor, será, mas tem efeitos de representação do que são os nossos sonhos, as nossas ambições, a nossa imagem de vencedores. Os homens querem ter sempre uma imagem positiva, mas sobretudo vitoriosa, de si mesmos.»
Fiquei deliciado ao ler o texto inicial de Pedro Azevedo onde fala do seu ídolo, essa glória do Sporting que foi Yazalde. Não tenho memória de o ver jogar, as minhas memórias são posteriores, pelo que me socorro de outros olhos para imaginar o que teria sido:
« O cheiro, a adivinhação e o timing são o jogador. Yazalde estava de costas - e voltava-se para fazer o golo: o golo já ia quase feito na maneira de rodar o corpo, o pé e a bola tinham encontro marcado -, o futebol tem essa triunfante fatalidade.»
In: MACHADO, Dinis - A liberdade do drible : crónicas de futebol. 1ª ed. Lisboa : Quetzal, 2015. p. 32
(texto original no jornal A Bola Magazine de 16 de Outubro de 1993)
Num outro espaço onde o Pedro Correia escreve, publicou um texto onde fala sobre as declarações «arraçadas» de xenófobas de um candidato autárquico.
Nos comentários a esse breve texto, alguém lhe pergunta: «se o Sr. Ventura fosse do seu Sporting, mereceria a mesma crítica?»
A propósito desta confusão, entre política e desporto, é bom ter presente os ensinamentos de José de Alvalade:
«Caridade, sim! Política, não!
Os tempos andavam conturbados. Sabia-se que, no Sporting, havia uma facção monárquica assumida. José de Alvalade tratou, de entrada, de separar a política e o desporto.
Evangelismo ou caridade, sim. Política ou politiquice, não. Era preciso separar o trigo do joio. E evitar envolvimentos, numa época em que o Rei D. Carlos tinha já a cabeça a prémio, a Carbonária misturava o ódio à Monarquia com a luta de classes, todos os dias eram dia de espera de uma revolução que, enfim, restaurasse a República. Por isso, estrategicamente, apesar de alguns dos seus fundadores serem monárquicos de estirpe e assumirem-no, os fundadores do Sporting colocaram, nos seus estatutos, em jeito de ponto de honra preceituavam “as casas e terrenos do clube nunca, sob qualquer pretexto, poderão ser cedidos para comícios políticos ou de outras reuniões que não sejam a apresentação dos exercícios a que o clube se destina”. E mais se determinava que nas “salas e dependências do clube ou em qualquer parte onde os sócios como tais se apresentem, é dos mesmos rigoroso dever o respeito pelas instituições vigentes, sendo-lhes expressamente proibido quaisquer discussões ou manifestações acerca de política militante”.»
In: Glória e vida de três grandes. A Bola, 1995, pp. 10-11
Ontem, o leitor Orlando Marinho num comentário a um texto meu, a propósito dos números imortais que envergaram a camisola, neste caso a número 1, do Sporting, escreveu:
«Provavelmente é a posição onde tivemos e continuamos a ter o privilégio de ver mais grandes jogadores e, dentro desses temos vários jogadores "Made in Sporting C.P.". Gostaria de acrescentar ao grupo alguns que, embora não tenham jogado no nosso clube, contribuíram para enriquecer o nosso futebol, tais como: Michel Preud'homme, Vítor Baía, Bento e Józef Młynarczyk»
Relembro uma crónica de Dinis Machado.
«Guarda-redes - o lugar e o risco
Apetece-me escrever acerca dos acerca dos guarda-redes. Nunca tive o prazer do lugar nas minhas andanças futebolísticas. Andei sempre na linha avançada, um bocado maniento do golo. E do drible. Quando, nos «treinos», fazia uma perninha na baliza, acabava-me com pouco jeito. Não tinha bem tempo de saída, nem a adivinhação ou a atenção concentrada que é um autêntico sexto sentido. E tinha (no fundo, era isso) o enorme gozo de jogar com os pés.
Nada disto impedia, antes pelo contrário, que sempre admirasse muito os guarda-redes, a sua particular vocação e a beleza e a emoção que davam ao jogo. E a valentia que mostravam. Por não me ver a atirar-me aos pés de um gal- farro com botas cheias de traves e ceguinho por fazer golo é que eu admirava os guarda-redes. Santa pachorra, a de levar, às vezes, pontapés na cabeça.
Estou a tentar explicar-me no jogo de há muitos anos. E diz-se, falando disto: o futebol perdeu alguma da sua inocência. E certo. Como em todas as actividades humanas da entrega pelo prazer no seu sinal de partida, na sua relação lúdica e pouco calculada com o objecto de satisfação, na sua naturalidade ainda não infiltrada de premeditações, o futebol nostálgico (passe o termo) lembra o amor à camisola e a vontade de fazer o jogo pelo jogo. Sabemos que se trata de uma ideia com alguns fundamentos, mas também aparece aqui o eco da distância que limpa um pouco os horizontes que ficaram para trás. E que já existiam tácticas (embrionárias, embora), mesmo no futebol escolar. Mas convenhamos: o futebol ainda não tinha entrado no laboratório, na grande congeminação. E não mexia com milhões de outras coisas. Era um pouco (como dizer?) «heroico».
Heroico. O jogador heroico (com aspas, é bom sublinhar), na sua noção simplista, existiu mesmo? Acho que sim, em certos aspectos. E ainda existe, também em certos aspectos. Por exemplo, os grandes habilidosos sujeitos a marcações impiedosas (hoje, até mais do que ontem). Mas também ressaltam diferenças. E volto aos guarda-redes.
Antigamente, defender a baliza requeria uma certa dose de coragem suicidária. Assumia-se o risco do lugar da maneira quase inconsciente. Os guarda-redes, para além dos atributos específicos de atenção e elasticidade, punham muitas vezes nas mãos do acaso a sua integridade física. Explicando-me melhor e como já disse um pouco atrás: atiravam-se aos pés. Evidenciavam uma certa bravata relacionada com as características especiais da posição.
Este «atiravam-se aos pés» (frase do vulgo), quando os avançados surgiam isolados, no momento do remate, foi responsável por muitos pontapés na cabeça. Havia, naturalmente, a irresponsabilidade do acto «heroico». O futebol deve ser um lugar de combatividade, mas não de perigo. Ai entrava a inocência de evitar o golo a todo o custo - e a obrigação de exibir essa inocência.
Hoje, os guarda-redes (até por razões naturais do progresso do jogo e das suas exigências científicas) são mais precavidos e calculistas. O termo é: profissionais, mesmo amadores. É certo que ainda encontramos razoáveis cultores desse excesso de temeridade. Ainda há guarda-redes que se «atiram aos pés». Mas as técnicas de defender a baliza sofisticaram-se: há uma utilização do corpo mais eficaz e menos perigosa, defendem-se mais remates com os pés, fecha-se melhor o ângulo, faz-se a mancha. A ligadura na cabeça ou, mesmo, o hospital ficam mais longe. Ainda bem.
A viagem do guarda-redes através dos tempos é, como tudo na vida, um caminho de aprendizagem. Enfim: aprende-se com os outros, escolhe-se pelo lado melhor. Se nos lembrarmos de que o futebol (ou o seu esboço) começou em antiguidades muito remotas, com guerreiros vencedores a utilizarem, como bolas, as cabeças dos adversários (a natureza humana é capaz, às vezes, de barbaridades quase inimagináveis), já não é mau chegarmos às portas do novo século com regras de prudência e de civismo. E há que melhorar, há sempre. Realmente, os pontapés na cabeça não fazem falta nenhuma no futebol. Para dar pontapés está lá a bola.»
In: MACHADO, Dinis - A liberdade do drible : crónicas de futebol. 1ª ed. Lisboa : Quetzal, 2015. p. 53-55
(texto original no jornal A Bola de 7 de Maio de 1994)
Era uma loja de artigos desportivos na Rua Nova do Almada. Eu e mais dois confrades da equipa de futebol do liceu entrámos (estou a ver-nos) bem tímidos, o gesto mal aplicado, a palavra incerta, em missão de formidável responsabilidade: entrevistar o dono da loja, figura relevante da constelação futebolística nacional, para o nosso jornal desportivo, escrito à máquina, com seis cópias tiradas a papel químico, que depois eram vendidas ao mais alto preço possível, quase em atmosfera de pequeno leilão, a fim de obtermos finanças para amortecer as despesas do aluguer dos campos e dos equipamentos para os jogos que fazíamos aos sábados e aos domingos. A entrevista saiu, creio, no número três, o último, tinha-nos falido a paciência e o tempo, e que também incluía noticiário sobre o nosso liceal clube e «comentário técnico» ao último desafio que tínhamos efec- tuado no nosso completamente amador, nada oficial e quase ilusório campeonato de futebol. Estou a lembrar-me. E parece poeira.
O entrevistado, bastante avançado no tempo como na equipa em que jogava, tratou-nos com uma deferência e uma atenção de primeira qualidade. Quebrou gelo, naturalizou o acontecimento, facilitou a tarefa, iludiu a admiração que manifestávamos, retirou o sobressalto à carga mítica da ocasião - e acabou por perguntar mais do que respondeu; perguntou da escola, dos sonhos e das vontades, de tudo e de nada. Eufóricos, dado que o impossível estava a acontecer, registámos os passos da conversa. O jornal onde tudo ficou escrito perdeu-se no lugar dos esquecimentos e das mudanças dos esquecimentos. Se algum de nós, fora eu, ainda tem um exemplar, e está a ler, passe-o ao herdeiro mais próximo: é património caloroso.
Dou ainda, de lembrança vaga, esboço do diálogo final.
O entrevistado:
- Já têm tudo o que querem saber? Depois, tragam- -me um exemplar.
Nós (quase em uníssono):
- Trazemos. Pode ficar descansado.
O entrevistado:
- Fazem uma entrevista em cada número?
Nós:
- Queremos fazer.
O entrevistado:
- Dou-lhes um conselho. Mudem de clube. Entrevistem, depois, alguém do Benfica, do Belenenses...
Nós:
- E isso que vamos fazer.
Despedimo-nos com aperto de mão. Crescemos um palmo e subimos a Rua Nova do Almada. Com uma mina de ouro no sentimento: levávamos, no papel, as palavras limpas e a simplicidade humana do comandante legítimo dos quatro violinos que jogavam à sua direita e à sua esquerda.
O senhor Fernando Peyroteo. (Chegado aqui, sei que os mais velhos que me lêem já tinham adivinhado, porque já sabiam.)
Fecho da efeméride: um dos nossos estafetas deixou, em tempo, um exemplar na loja.
Existirá ainda?»
In: MACHADO, Dinis - A liberdade do drible : crónicas de futebol. 1ª ed. Lisboa : Quetzal, 2015. p. 65-67
(texto original no jornal A Bola de 28 de Março de 1995)
«À medida que o futebol vai sendo cada vez mais organizado e científico, é interessante verificar que permanece a herança da voz do peão para explicar, ou tentar explicar, o que se passa no terreno de jogo. Esse entendimento epidérmico com os elementos do espectáculo, a sua visão não encartada, continua a transmitir com agudeza os vários aspectos que se ligam à movimentação e às consequências de uma partida de futebol.
Movimentações e consequências: «Parece que têm mais jogadores.» Esta observação, por parte do espectador (e é frase que me lembro de miúdo) reflecte, bem à evidência, a superioridade de manobra de uma equipa sobre outra. Uma equipa em estado de superioridade global baseia a sua operacionalidade na força, na destreza, no melhor controlo de bola e na sua recuperação, na certeza do passe, na rapidez de execução, no facto de melhor fechar a sua baliza e procurar melhor a baliza adversaria. Daí, «parece que têm mais jogadores». Também outra frase, que tem que ver com esta, acaba por ser um raciocínio semelhante com palavras diferentes: «Sobra-lhes sempre um jogador.» Ouvi isto muitas vezes - esta tentativa de fixar, numa ideia, numa comparação simples, a diferença que se estabelecia entre os dois conjuntos. Com o aparecimento das tácticas, o WM, o libero (cá está o mais um forjado na estratégia), o 4-2-4 ou o futebol total, o objectivo é ocupar o terreno, controlar as zonas nevrálgicas e as mais influentes para o desfecho de uma partida. O raciocínio é este, embora um pouco simplista (na minha explicação, é óbvio): uma equipa que pretende dominar o adversário e os acontecimentos tentará ocupar todo o espaço do cenário, ter a bola, determinar o ritmo, criar condições para envolver o contrário, fazê-lo sair de jogo, remetê-lo ao seu meio-campo, meter a técnica em todo esse espaço criado, forjar oportunidades de golo, fazer golos. Assim, «têm mais jogadores», ou «sobra-lhes um». Essa peça sempre solta, que é uma espécie de excedente de capacidade para materializar, com o corpo de trabalho investido num labor perante o qual o adversário (e isto também é voz do peão) «chega sempre atrasado!!!».
Para compor o ramalhete, na explanação não especializada que estou a fazer (o escriba também é voz do peão) existem, ainda, os jogadores que introduzem a diferença e que emitem os sinais de qualidade e de improviso, que são suplementos activos no trabalho na evolução do jogo: os grandes controladores do meio-campo, os defesas quase inultrapassáveis, os guarda-redes que adiam resultados ou os dianteiros que ganham desafios. Aqui, a teoria de ter mais um já pode oscilar: depende da inspiração de alguns jogadores que podem alterar o curso normal de um desafio, por muito preparado que esteja antes de se fazer.
Conjunto e acção individual: desta simbiose, ou da sua oposição, constrói-se o rumo de um desafio de futebol. Felizmente para o jogo, para a surpresa do seu percurso e do seu desfecho, sobrar sempre um jogador na melhor equipa não lhe dá qualquer garantia absoluta de vitória. O futebol tem uma grande vocação dos movimentos imprevisíveis, dos lances incomuns e da escolha do acaso que o retiram, inexoravelmente, do universo da lógica.»
In: MACHADO, Dinis - A liberdade do drible : crónicas de futebol. 1ª ed. Lisboa : Quetzal, 2015. p. 49-51
(texto original no jornal A Bola de 6 de Fevereiro de 1996)
Em tempos, num outro espaço do Pedro, coloquei este delicioso texto do Fernando Assis Pacheco.
"De como no Loreto o Peyroteo fez trinta por uma linha e o jogo acabou (pasmai, ó miúdos de hoje!) empatado cinco a cinco
O Peyroteo (os outros que me desculpem) era aquela máquina nos tempos em que o craque passeava a sua também excelente maneira de bola jogar pelos quintais conimbricenses, não de todos, é claro mas ainda assim os bastantes para que a memória se não haja apagado por inteiro. Evidentemente que um Peyroteo deixa sempre mais memória, por ter sido do Sporting e da selecção, e o craque apenas de Os Melhores da Rua Guerra Junqueiro e Arredores F.C., agremiação que da modéstia administrativa não chegou a passar (e promocional também: nunca se nos ofereceu nenhum construtor civil para presidente). Ora bem, fala-se, pois, de dois craques: o já conhecido do leitor e o maior, maiorzíssimo que o Eusébio, este aparecido providencialmente na era do marketing. Eis a comparação segue história.
A minha dessa altura amada idolatrada salvé Académica andava salvé erro ou omissão paralela bastante enrascada por causa de uns pontos que não vinham em domingos certos. Pois quem havia de calhar entrementes no campo do Loreto, propriedade do falecido Lusitânia? O Peyroteo. Idolatrada ia jogar ao Loreto pela simples razão de que se haviam registado uns azares que nem o demo explica (cf. Jornais da época). E com isto o ansiado prélio (cf. cronistas de agora) realizava-se de manhã, e por sinal manhã de sol, com um ventinho leve a dar nas bandeirolas de canto. Apropinquei-me na bancada central, levado pelo já referido e infatigável e jamais igualado tio Artur: no bolso direito da camurcine um papo-seco barrado a gostosa manteiga.
«Ganhámos ó quê?», quis o craque saber.
«Ó quê», regougou Artur, o tio."
Pois toma, foi mesmo ó quê. A Académica a marcar golos, o Peyroteo a empatar de cada vez que o seu (de verde escuro) guarda-meta Azevedo chupava mais um. Assim: avança a Académica, enleia o adverso, troca a chincha de um para outro jogador, aproxima-se da baliza, pode marcar, pooode marcar maaarqué golo! E logo a seguir: avança o Peyroteo, faz uma finta, aplica uma gambeta, dribla um, dribla dois, volta atrás e dribla-os novamente, arranca, marca, não marca, ainda não marcou, agòraèqué ó minha mãe e bumba, foi. Ajudem-me quantos se lembram – FORAM CINCO A CINCO, NÃO FORAM? Pasmai, ó miúdos de hoje, e repasmai, e contrapasmai se quiserdes, que aquilo parecia um pasma de guarda a galinheiro. Do lado de cá onze em preto viúvo, do lado de lá o Peyroteo e, a ajudar o Peyroteo, dez manos jeitosos mas nem por isso (os manos que me desculpem – isto na memória embrulha-se a cada passo e acontece sermos menos verdadeiros).
O tio Artur estava passo. Olhava-me, eu olhava-o, e agora era ainda o intervalo, aí com alguns três a três.
«Deixam-no sozinho», fez o tio.
«A mim», admirei-me. «Atão o meu pai só me deixa sair consigo!»
«Gaita», fez o tio diferentemente. «Não és tu, é o Peyroteo.»
São vidas, pensei.
Vidas de craque. Pois na segunda parte a máquina carburou ainda melhor, aplicou desconhecidas novas gambetas na malta, fingiu que corria, driblava, não driblava, e sempre bumba, bumba, bumba prà baliza da Académica, cujo n.º 1 (neste século recuado não havia números) se punha a rezar a um deus desconhecido, como o protagonista do John Steinbeck. Cinco a cinco! Há lá resultados destes no futebolinha coisa pouca de 1972?
Voltei a para casa contente: contente por ter visto o Peyroteo, aquela super-máquina de jogar a bola. E triste: triste por chegar ao quintal do Luís Marques, agarrar na mini-borracha, ensaiar uma volta das dele (Peyroteo) e não ser capaz. Ombro aqui, joelho acolá. Sempre o mafadado muro a barrar-me o entreinamento…
Ó miúdos, era só um. Era só um e chamava-se Peyroteo. Fernando. Ao menos isso: Fernando como o craque.
De onde esta anotação no caderninho - «sensacionais, ele e eu». Já se mentia em 40 e tal.”
In: PACHECO, Fernando Assis, - Memórias de um craque. Lisboa : Assírio e Alvim, 2005. Págs. 30 a 32
Poesia e futebol, poetas e futebolistas não são evidências em termos de relação. Muitas vezes por preconceito intelectual, as mais das vezes por desconhecimento. Entre exemplos na universalidade lusófona, poderia citar Nelson Rodrigues ou Manuel Alegre. Nos futebolistas poetas Pelé, Garrincha, Peyroteo, Eusébio ou Cristiano Ronaldo. Contudo opto por Carlos Drummond de Andrade, mineiro e vascaíno que segundo um seu neto "A cada gol do adversário, Carlos se levantava contrariado e ia escrever ou arrumar papéis no escritório, até à virada da maré." E como os Sportinguistas acreditam sempre na virada. Mas, a palavra à poesia:
"Quando é dia de futebol Uma paixão: A bola O drible O chute O gol "
Futebol Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma. A bola é a mesma: forma sacra para craques e pernas-de-pau. Mesma a volúpia de chutar na delirante copa-mundo Ou no árido espaço do morro. São vôos de estátuas súbitas, desenhos feéricos, bailados de pés e troncos entrançados. Instantes lúdicos: flutua o jogador, gravado no ar - afinal, o corpo triunfante da triste lei da gravidade.
«O futebol também é a pátria. Nos dias de hoje, um país que ainda mal emergiu no plano político e internacional pode existir porque tem uma grande equipa de futebol, alcançando, desse modo, uma forma de reconhecimento mundial. (...) Popular, mundial, muito fácil de compreender e de interpretar, muito mais fácil de acompanhar do que outros desportos como o râguebi, o futebol permite, de certa forma, uma outra valorização na cena internacional.»
Jorge Semprún, A Linguagem é a Minha Pátria. Tradução de Maria Carvalho
Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma.
A bola é a mesma: forma sacra para craques e pernas-de-pau. Mesma a volúpia de chutar na delirante copa-mundo ou no árido espaço do morro.
São vôos de estátuas súbitas, desenhos feéricos, bailados de pés e troncos entrançados. Instantes lúdicos: flutua o jogador, gravado no ar - afinal, o corpo triunfante da triste lei da gravidade.
Carlos Drummond de Andrade
PS- A fotografia tirei-a no Rio Juruá, Brasil, em Agosto de 2012