Entendimentos Fuscos (2): Os Clubes Desportivos e a Pátria Amada
A imprensa desportiva em geral, essa mestra dos lugares comuns e dos chavões mais primários e deprimentes, propaga entusiasticamente, sempre que um clube português ou a selecção nacional jogam com adversários estrangeiros, a extraordinária ideia de que desejar a vitória desses clubes ou da selecção é uma questão de patriotismo, que se oporá às desprezíveis reacções clubistas dos adeptos mais fanáticos, incapazes de reconhecer o carácter sublime e a elevação moral de um sentimento tão nobilitante.
Presas de deleitosa exaltação, os jornalistas desportivos são, como já uma vez disse neste blog, os únicos que, pelo menos de forma tão desembaraçada, se consideram desvinculados dos deveres fixados pelo Estatuto do Jornalista. Quais rigor, isenção e independência, vamo-nos a eles que não são portugueses. Curioso conceito de amor à pátria. A língua portuguesa, por exemplo, não tem importância nenhuma, não lhe devemos nenhum respeito, trata-se de uma brasileirice a que tal imprensa não atribui mais do que uma muito moderada ligação com o orgulho que devemos às nossas instituições e à nossa história.
Os jornais e os programas desportivos da televisão e da rádio são, nesta matéria, despudorados estendais de ignorância, de escarnecedor e zombeteiro desdém pela língua, é quase impossível percorrermos umas poucas linhas ou ouvirmos mais do que meia-dúzia de frases sem depararmos com inacreditáveis insultos ao português, com as mais miseráveis agressões à gramática, com a execução sumária da sintaxe mais básica e com o desconhecimento grosseiro e indigno do vocabulário mais elementar. Mas o que deve contar, o que demonstra os nossos mais nobres sentimentos de paixão por Portugal é, segundo estes desapiedados e emperdernidos carrascos da língua, o apoio incondicional e veemente, alegre e ardente aos clubes que disputam com os seus congéneres estrangeiros as provas da UEFA. Mesmo que não gostemos deles nem um bocadinho.
Neste campo, a adopção do famigerado acordo ortográfico por esta imprensa tão embevecida pelo seu amor pátrio aos clubes desportivos constitui mais uma ironia. Temos que ser todos por um, exorta-nos, quando é um dos nossos não há clubismos, inflama-se, mas já não se importa de espalhar, com insolente e sobranceiro arrebatamento, as exalações pútridas de um instrumento indecoroso e soez de degradação da língua, essa sim, a merecer, talvez como nenhuma outra instituição da nossa cultura e da nossa história, uma dedicação apaixonada e sem comedimento. Mas isso não lhe interessa, que importância tem o aviltamento do português, mesmo se este é determinado por ignominiosas preocupações mercantis, por que deveria preocupar-se com o facto de a nossa língua estar sujeita aos humores de maiorias parlamentares ocasionais, indiferentes aos rigores técnicos e científicos, que relevância assume a circunstância de aplicar com tamanha diligência um acordo internacional que não está e é possível que nunca venha a estar em vigor? Nada, nada disto tem importância para ela. Mas dá lições de patriotismo, adverte-nos, de dedo em riste e voz tremente, para a imperdoável transgressão de não vibrarmos por um clube português num simples desafio desportivo internacional. Como é óbvio, não me passa pela cabeça dar troco a este tipo de menoridades pseudo-patrióticas.
Hoje estive pelo Chelsea e gostei do resultado, porque, pura e simplesmente, como é natural, gosto mais do Chelsea do que do Benfica. Como gosto mais do Palmense, do Arouca ou do Marrazes do que do Benfica. E, a bem da nossa sanidade colectiva e do justo peso do desporto profissional na sociedade em que vivemos, espero que, em Maio de 2005, os adeptos benfiquistas tenham estado pelo CSKA e tenham ficado satisfeitos com o resultado. Não por não serem patriotas mas, pura e simplemente, por, como é natural, gostarem mais do CSKA do que do Sporting. Como gostavam e continuam a gostar mais do Palmense, do Arouca ou do Marrazes do que do Sporting.
P.S. O Pedro Correia acaba de publicar um livro dedicado, exactamente, ao tema do acordo ortográfico. Ainda não o li, mas fá-lo-ei, certamente, com todo o prazer. E é muito satisfeito e orgulhoso por nele colaborar que vejo, aqui no És a Nossa Fé, alguns dos seus co-autores, não sei se todos, mas, a julgar pelos textos publicados, um número significativo, manifestarem uma saudável indiferença pelo acordês.
À medida do blog e sem perder de vista os seus objectivos, também podemos lutar pela nossa língua.
Força Pedro, que as mãos nunca lhe doam.