A engrenagem*
Já vos aqui falei de Jean-Paul Sartre. Uma das minhas obras de eleição é “A Engrenagem”, um livro/peça de teatro que nos conta a história das últimas horas do ditador Jean Aguerra, cercado no seu palácio presidencial por revoltosos irados que estão a tentar tomar o poder.
O enredo anda à volta de um país pobre que tem petróleo, mas este é explorado por uma companhia estrangeira, numa concessão dada pelo tirano anterior, que foi deposto por causa disso mesmo.
Jean Aguerra tinha tomado o poder com a promessa de nacionalizar o petróleo. Nunca o fez. No tribunal popular, onde ocorre um julgamento fantoche, os diálogos entre os revoltosos e o ditador são uma peça de literatura pela rudeza das palavras, a podridão do poder e as aspirações de quem o quer tomar. Entre os que estão prestes a vencer a contenda estão dois ex-amigos de Aguerra: François e Suzanne.
A vida de Aguerra, pessoal e política, é escrutinada ao pormenor. Agiu mal quando tomou o poder, agiu mal quando o conservou, agiu contra o povo e contra quem em si confiava. Entregou-se ao whisky e bebia sem parar.
O rol de acusações sucede-se, com a acção a desenrolar-se entre o presente (o tribunal) e o passado, para se provar a culpa do ditador. Já não se julga apenas o líder, aquele que foi o desejado, mas o homem e as suas acções. E, no meio da turba irada, para contentar as hostes, vale tudo.
Jean Aguerra conta também o relato de uma reunião havida, nos primeiros momentos da revolução entre si e o embaixador do país que explorava as reservas de petróleo. Diz o diplomata, no relato do ditador:
“O governo do meu país encarregou-me de vos dizer que não tem a intenção de intervir nos nossos assuntos internos. Por consequência, Excelência, reconhece a vossa autoridade. Há apenas um ponto sobre o qual não transigiremos, porque toca nos interesses dos nossos súbitos. Deve ficar assente que mantereis o status no que se refere às concessões petrolíferas”(...) e “qualquer atentado contra a propriedade dos nossos nacionais seria considerado pelo meu Governo como um casus belli. Para apoiar eventualmente o seu pedido, o meu Governo concentrou trinta e cinco divisões ao longo das nossas fronteiras”.
O julgamento prossegue, e Aguerra limita-se a ouvir. Das poucas palvras que se lhe retiram destacam-se estas: “Pobres idiotas! Vocês acreditam numa mudança de política, mas não vão ter senão uma mudança de pessoas”. E, apontando para o que lhe sucederá, diz: “Farás a minha política!” Fá-la-ás porque não há duas a fazer. Imaginas que vou justificá-la? Hás-de ser tu que a justificarás, daqui a três, daqui a seis meses”.
Como estava previsto, Aguerra é julgado e condenado à morte. Depois da morte de Aguerra, Sartre, a finalizar o livro, coloca a acção deste no gabinete do ditador deposto, onde se encontra agora François. Que se prepara para receber, à semelhança do seu antecessor, o mesmo embaixador do país estrangeiro que explora o petróleo nacional.
“O embaixador está diante de François. Fala polidamente, mas mal velando a ameaça contida nas suas palavras. François escuta-o com um ar feroz.
- O nosso Governo não pretende senão ter relações de amizade com o vosso – diz o embaixador.
– Estou, no entanto, encarregado de vos prevenir de que, se nacionalizarem os petróleos e desapossarem os nossos nacionais, consideramos isso como um casus belli.
- O vosso Governo não tem de intervir nos nossos assuntos internos – diz François.
- Como quiser, Excelência. Lembro que o vosso país é pequeno e que o nosso é muito grande.
Um silêncio.
O embaixador insiste polidamente: - O meu Governo aguarda uma resposta precisa.
- Não tocaremos no petróleo – diz François.
O embaixador inclina-se com um sorriso irónico.
- Não esperávamos menos da vossa ponderação, Excelência. Depois retira-se.
Da porta, o criado grave volta-se para François:
- A delegação dos operários do petróleo está à espera de Vossa Excelência.
- Espera – diz François.
– Dá-me um copo de whisky. O criado serve-o sem dizer palavra. François bebe e pousa o copo. Depois faz sinal ao criado e diz, com um ar sombrio:
- Manda-os entrar.”
*Artigo desta semana do Jornal do Sporting