Deus sabe
Deus sabe que isto iria acontecer um dia. Primeiro, fingi que não ouvi. Estava meio constipado e sempre que fico meio constipado perco uma parte substancial da minha capacidade auditiva. O facto de eu nunca ter ficado até então meio constipado e de ter ouvido todo o resto da conversa deixou-me ligeiramente fragilizado na argumentação, mas acrescentei rápido que as meias constipações só provocam a perda de meia capacidade auditiva. É por isso que as pessoas ficam meio constipadas e ouvem apenas metade das coisas que lhes dizem. Todos os adultos sabem isto e eu nem entendo como é que os não-adultos duvidam do que os já-adultos dizem. Aqui, Deus sabe que já estava coberto de ridículo com tantos desdobramentos de personalidade, mas segurei-me o melhor que consegui. O importante era não ouvir a mesma pergunta. Fingir. Saltar de escantilhão para outro assunto. O importante era fingir não ter ouvido. Sim, Deus sabe que eu não podia responder àquela pergunta. Quando insistiu em saber se podia ser só um bocadinho do clube-cujo-nome-nunca mais-vou-pronunciar e em circunstâncias específicas, o que pressupõe um maquiavélico plano familiar arquitectado nas minhas costas, então sim, perdi a cabeça. Deus sabe que vomitei um não que me incomodou a mim próprio. Voltei a ser o animal da véspera, um animal macilento, com os olhos dilatados e a destilar repetidos nãos enquanto me rebolava no chão. Ralhei comigo com severidade, mas Deus sabe que há certas coisas que nem às crianças admitimos. Comparado com o que passei, até uma dor de dentes tem piada.