A propósito de justiça e sorte
Há dois conceitos que evito associar às minhas reflexões ocasionais sobre o fenómeno desportivo - e o futebol em particular.
O primeiro é o conceito de justiça. Escuto e leio muitas análises aos jogos ancoradas neste conceito - "se houvesse justiça, a equipa X teria ganho"; "a vitória da equipa Y foi justa".
Ora, salvo no que se refere a procedimentos disciplinares, a justiça não é para aqui chamada. Um desafio de futebol não é uma audiência de tribunal. Aqui o importante é vencer - por uma margem muito dilatada, de preferência, mas se for pela diferença mínima também serve. Que se vença até por "meio golo", como na velha boutade das conversas de café.
Tomemos um exemplo: o Benfica, dizem alguns comentadores, foi afastado "injustamente" da Liga dos Campeões no recente "jogo-treino" (Tito Vilanova dixit) em Camp Nou. "Injustamente" porquê? Porque esse afastamento acabou por ser ditado pela vitória simultânea do Celtic contra o Spartak de Moscovo por um penálti mal assinalado pelo árbitro desta partida.
Ao pretendermos explicar tudo em futebol recorrendo ao conceito de justiça, acabamos por não explicar nada. Porque aquilo a que por comodidade chamamos injustiça é uma espécie de lei não escrita imanente a todo o jogo. Uma das mais brilhantes proezas técnicas da carreira em campo de Cristiano Ronaldo foi aquilo a que se chama um golo limpo, "injustamente" anulado pelo árbitro por alegada deslocação de Nani numa vitória da selecção portuguesa contra a Espanha.
Eu estava lá - e vi. Nunca hei-de esquecer aquele golo, reproduzido aqui mais acima.
É inútil insistir no contrário: não existe uma justiça poética nos estádios que resgata os verdadeiros campeões, projectando-os da relva dos estádios para esse simulacro de Campos Elíseos a que se convencionou chamar verdade desportiva. Penso nisto todas as vezes que me lembro de um dos jogadores mais celebrados da história do futebol. Diego Maradona, ele mesmo. Um dos seus golos mais famosos - e decisivos - foi marcado com a mão, à margem das leis do jogo. Passou à história não como infractor, mas como lenda viva.
Onde mora a justiça em tudo isto?
O segundo conceito é o de sorte.
Diz-se que Fulano é um sujeito com sorte ou que Beltrano, figura estimável, padece no entanto do facto confirmado por todas as evidências de não ser acompanhado por essa cobiçada deusa a que chamamos Sorte. E ninguém quer figuras tocadas pelo estigma do azar na sua equipa do coração.
Tome-se por exemplo o actual treinador do Sp. Braga, técnico competente mas algo infortunado, ao que dizem: no início da actual temporada, havia adeptos do Sporting a suspirar por ele, sugerindo-o para o lugar do malogrado Sá Pinto. Esses adeptos têm má memória. E provavelmente já estariam neste momento a acenar-lhe também com lenços brancos, como fizeram os do Braga ao verem a sua equipa eliminada há dias pelo Galatasaray, em casa, da Liga dos Campeões, numa espécie de repetição antecipada do que sucedeu há sete anos em Alvalade e se recorda no vídeo aqui em baixo.
A sorte conquista-se, constrói-se. Dá muito trabalho. Prefiro sempre usar a palavra mérito em vez da palavra sorte. E volto a Cristiano Ronaldo: desde cedo, ainda na academia de Alvalade, onde se formou para o futebol e para a vida, o campeão madeirense prolongava as sessões de treino, continuando a exercitar-se mesmo após a partida dos colegas. Aperfeiçoou e desenvolveu da melhor maneira as suas aptidões naturais. Ultrapassou a fronteira que separa os jeitosos (que é quanto basta quase sempre em Portugal) daqueles que têm verdadeiro talento.
A sorte ajuda? Pois ajuda. Mas não explica nada. Quando Cristiano, com um remate bem colocado, cheio de força, faz tremer o poste da baliza adversária, os analistas que adoram cultivar o lugar-comum dirão: "Teve azar." Ele será o primeiro, no entanto, a reconhecer que esteve quase mas terá de esforçar-se ainda um pouco mais para a bola entrar na próxima vez. Que poderá ser já no minuto seguinte.
Experimentem usar mérito ou competência no lugar da palavra sorte. Não é uma simples questão semântica: há toda uma filosofia de vida subjacente às palavras que escolhemos.
Cristiano Ronaldo está para o futebol como Robert Capa estava para as reportagens de guerra. Merecidamente distinguido em vida com o título de melhor repórter fotográfico da sua geração, Capa costumava dizer: "Se a foto não estava suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto."
A sorte é isto. E constrói-se a todo o tempo por aqueles que beneficiam dela.
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