Escreve Miguel Sousa Tavares (A Bola, 23/07/2012):
Fico à espera de saber qual o castigo que o autor destas linhas defenderia que fosse aplicado ao clube de que é adepto. Há gente que não tem espelhos em casa...
Grave questão, de facto: como escolher um e apenas um ídolo do Sporting? A verdade é que não pode ser resolvida de uma forma racional. Resta a emoção. É difícil não se ser simpática com uma pessoa que tem a mesma idade, nasceu no mesmo mês (e no mesmo dia que José Alvalade, Wikipédia dixit), ama descabeladamente o mesmo clube, marca golos fantásticos, põe um estádio em êxtase. E tem tanta pinta, ainda por cima.
Começo por espalhar sobre a mesa, em confusão, recortes antigos de jornais, fotografias de Sá Pinto, de leões tiradas em África, uns apontamentos de poesia. Poesia? Para falar de um futebolista? Um nonsense? Não. “Vem-lhe o pressentimento; ele se lança / Mais rápido que o próprio pensamento / Dribla mais um, mais dois; a bola trança / Feliz, entre seus pés - um pé-de-vento!”, escreve o Vinicius e eu nem preciso de fechar os olhos para ver o Sá Pinto.
Sportinguista desde sempre, foi por ele que bati tantas vezes as pálpebras em adoração beata, rendida ao sortilégio do futebol no seu esplendor, impossible is nothing quando Sá Pinto estava em campo. “Fazer da palavra um embalo / é o mais puro e apurado / senso da poesia”, disse o Mia Couto. Que dizer de quem embala, transporta a esperança de tantos na ponta dos pés? O que Sá Pinto fazia com a bola é pura dança.
Estou convicta que a vida é uma espécie de casino: ganha-se ou perde-se na proporção do que se aposta. E Sá Pinto aposta tudo. Líder nato, teimoso, imprevisível porém leal, perigoso e por isso fascinante. Dou por mim, quase, quase, a tolerar-lhe defeitos – don’t mention Liedson - que não julgava capaz de aceitar.
Agora a sério. Há mais príncipes encantados a transformarem-se em sapos do que sapos a transformarem-se em príncipes encantados. Pois é, apesar dos sapos serem verdes e tudo, o que eu queria mesmo, o que eu queria muito, era que Sá Pinto, que não será o mais perfeito dos príncipes encantados porém é um grande treinador, fizesse jus ao seu apelido, Ricardo Coração de Leão, e conquistasse, não Jerusalém, mas o título. Não é pedir demais, right Ricardo?
Paulo Bento esforçou-se o mais que lhe foi possível: fê-lo alinhar em quatro dos cinco jogos do Euro 2012. Esforçado escusado: o rapaz que nessa altura andou a ser levado ao colo pela imprensa de pigmento encarnado não marcou sequer um golo para amostra no Europeu - ao contrário por exemplo de Varela, que rematou com êxito tendo jogado bem menos. Nem era novidade: também no campeonato nacional, onde alinhou em 12 jogos, Nélson Oliveira não conseguiu marcar. Só mesmo alguém com eventuais problemas do foro oftalmológico era capaz de concluir o seguinte: "Potencialmente, Nélson Oliveira é já o melhor ponta-de-lança português. Não temos melhor."
É lamentável que Jorge Jesus não tenha dado ouvidos às entusiásticas proclamações de admiração pelo "melhor ponta-de-lança português". O técnico encarnado deixou claro que não contava com ele para a nova temporada, o que levou o rapaz a marchar para as brumas da Galiza, onde "já é potencialmente" um dos melhores avançados desse potentado futebolístico chamado Deportivo da Corunha, recém-promovido à I Liga espanhola.
Vamos sentir saudades dele. E dos seus não-golos. E dos seus quase-golos. Afinal, algum mérito ele deve ter: não me lembro de, nos últimos anos do futebol português, alguém ser tão elogiado por ter conseguido tão pouco.