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És a nossa Fé!

Memórias de Peyroteo (4)

(cont.)

 

«Gorada a primeira oportunidade, fiquei em Moçâmedes defendendo as cores do Atlético e fazendo parte da Selecção, sempre que esta disputou jogos.

Meu irmão Álvaro, funcionário do Banco de Angola em Moçâmedes e actual gerente do mesmo Banco, na Gabela, fora transferido para Sá da Bandeira.

Ali fundou, com o auxílio de outros carolas, o “Desportivo da Huila”.

Porque eu, em Moçâmedes, frequentava a Escola Primária Superior e em Sá da Bandeira havia um Liceu, o Álvaro convidou-me a mudar para aquela linda Cidade do planalto, que dista cerca de duas centenas de quilómetros de Moçâmedes.

Demorou tempo até que aceitasse o convite e me instalasse em sua casa.

Entretanto, aproveitando as férias escolares, de três em três meses, ia até Sá da Bandeira e, como não podia deixar de ser, dava uns pontapés na bola, equipando-me com a camisola do clube que meu irmão fundara. Ele comparecia aos treinos e, equipando-se também, ainda fazia ver aos novos como se jogava a defesa central. Acentue-se que, nos seus tempos, o “Alvarinho” teria, sem dúvida, o seu lugar na nossa Selecção Nacional.

Aliás, o mesmo teria acontecido, com toda a naturalidade, a meus irmãos mais velhos - José, Jorge, Mário, Américo e Júlio. Qualquer deles teria feito tanto ou mais do que eu se, na devida altura, tivesse vindo para a Metrópole.

Mas nesse tempo não se pensava - ou não se acreditava - que Angola e Moçambique eram óptimo “viveiro” de esplêndidos desportistas, em especial no respeitante a futebol, ténis e natação…

Removidas as dificuldades, abalei para Sá da Bandeira, matriculando-me no Liceu Diogo Cão.

O que foi e é Angola, a sua história, as suas possibilidades económicas, o nível de vida, educação e cultura das suas gentes, tudo ou quase tudo é, ainda, infelizmente, desconhecido de uma parte do povo metropolitano.

Só por si, o facto de se ter nascido em Angola, liga-nos à fatalidade de descendência negra e, consequentemente, dotados de inferior mentalidade, sem princípios de cultura e educação e, porventura, marcados com o estigma do canibalismo primitivo… No entanto, quantos grandes médicos, verdadeiras sumidades nos sectores da medicina humana ou veterinária, quantos competentíssimos engenheiros, arquitectos e licenciados nas mais variadas faculdades, quer em Portugal, quer no estrangeiro, são angolanos?

Sou natural de Angola, filho de pais europeus mas ainda que assim não fosse, jamais negaria a paternidade e o torrão africano que foi meu berço. E se algo de fama e de glória conquistei no campo desportivo, em prestígio e honra da bandeira de Portugal, aos meus conterrâneos e patrícios as ofereço, arrogando-me o direito e o dever de os representar.

Quanto aos ignorantes, a quem tudo serve para amesquinhar e ferir, daqui os convido a passarem os olhos sobre as páginas da história da nossa grande Província de Angola e, sobretudo, a visitá-la, na certeza antecipada de que muito terão de aprender com os angolanos!

Aberto este parêntesis, voltemos à história da minha vida desportiva.

O Liceu Diogo Cão tinha uma equipa de futebol: “O Académico”.

Fiz parte da turma dos estudantes e o mais curioso é que, quando vim para a Metrópole, pensei em ir para Coimbra… continuar os estudos e formar-me em medicina veterinária. Claro que, sendo assim, a minha ideia era a do “jogar na Académica de Coimbra.

Não sabiam? Pois esta é a verdade. Direi mesmo que, poucos dias antes de embarcar, em Luanda, os planos eram esses!…

Mais adiante veremos o que motivou a alteração dos meus intentos.

Por natural imperativo, a equipa do liceu era formada por estudantes, rapaziada nova, com sangue na guelra. Quantas vezes a comparo em vontade, em orgulho, em espírito de equipa, em sacrifício, em camaradagem, enfim, com o “elan” da velha e sempre moça e irreverente mas simpática “briosa”!

Também a mocidade escolar do Liceu Diogo Cão, voluntariosa e arrebatada, não admitia, sem luta ardente e vigorosa, que alguma equipa lhe batesse o pé.

Vem a propósito contar um episódio ocorrido durante um jogo disputado entre o “Académico” e uma equipa da qual faziam parte veteranos, alguns dos quais já haviam abandonado a prática do futebol. Servirá para demonstrar o verdadeiro espírito desportivo, a compreensão nítida do respeito que, nas pugnas, em qualquer emergência, sempre nos deve merecer o adversário, seja ele qual for.

Eu alinhava a avançado-centro da equipa dos estudantes e, meu irmão Álvaro ocupou o lugar de defesa central do grupo contrário.

Por capricho, promessa amorosa (?) ou simples brincadeira, o Álvaro deixara crescer a barba, usando uma fortíssima pêra, que lhe dava um ar de austeridade capaz de nos amedrontar e convencer que, ele só, chegava para meia dúzia de rapazolas como eu!

Pelos lugares que ocupávamos nas equipas, o “barbaças” era a minha sombra negra.

Em determinado lance, meu irmão tentou cabecear a bola que vinha muito baixa, ao mesmo tempo que eu lhe metia o pé! Deu-se o inevitável: a bola tomou rumo diferente e o meu pé atingiu, em cheio, a cara do “barbaças”. Olhei para ele, vi o sangue a escorrer do nariz e… esperei uma grande bofetada…

O árbitro interrompeu o desafio.

A sangrar, de mãos na cara, o Álvaro ouviu as embaraçadas e confundidas desculpas que lhe apresentei e disse:

- “Vamos ao jogo e nada de conversas. Aqui sou o defesa central do meu grupo e não o teu irmão mais velho. Mesmo que tivesses culpa, isto não passava de um incidente do jogo. Vá! toca a andar para o teu lugar”!

Bom desportista e bom irmão!

No fim do jogo fomos juntos para casa. Nem uma palavra de recriminação ou advertência. E só o facto de chegar a casa com o “barbaças”, me livrou de um tremendo puxão de orelhas, a receber de minha cunhada “ Mariazinha”, por eu ter amachucado o nariz do seu querido maridinho!

Recordando este incidente, que julguei digno de registo, não só pelo exemplo de desportivismo que nos dá, como ainda pela nobreza de carácter que encerra, seria monótono e sem interesse enumerar quantos jogos fiz pelo Académico ou dizer se fui bom estudante.

Foram muitos os desafios e aprendi, no Liceu, o que aprende, normalmente, um estudante mais ou menos aplicado.

 

Prepara-se a realização do encontro entre as selecções das duas cidades.

Fernando Peyroteo seria seleccionado pela Huila, uma vez que, no jogo anterior havia defendido a cidade de Moçâmedes?

Um jornalista de nome Oliveira, se não me engano, ventilou o caso no “Notícias da Huila” e, veladamente, chamava a atenção do seleccionador, mostrando-lhe os perigos que corria chamando-me a fazer parte da equipa.

Isso de nada valeu. Fui escolhido e joguei. Qual o comportamento? Direi apenas o que de memória ficou desse jogo e me parece deveras interessante citar.

O resultado foi, creio eu, de 7 a 2 a favor de Moçâmedes.

Comecei o desafio jogando a interior direito e acabei-o, em glória, no lugar de defesa central, por lesão do titular, que abandonara o terreno. Fiz o que vulgarmente se chama um jogo em cheio! Tudo me saiu bem. Dir-se-ia que o meu lugar sempre fora aquele!

No final do prélio, a crítica foi unânime em afirmar que a selec- ção da Huila perdera só por 7-2 devido ao meu esforço, à minha vontade, ao meu denodado espírito de luta e sacrifício.

E o jornalista Sr. Oliveira, reconhecendo, porventura, a veleidade das suas premissas, escreveu mais ou menos isto:

- “Peyroteo foi o melhor dos 22 jogadores em campo, chegou e sobrou para anular a eficiência dos avançados contrários. É certo que eles marcaram 7 golos, mas se Peyroteo não tem vindo para a defesa, a derrota seria muito mais volumosa”.

É possível que o jornalista rectificasse a sua opinião ao assistir à fase que descrevo tão fielmente quanto o permite a memória, decorrida há mais de uma dúzia de anos.

Foi assim: o árbitro assinalou uma “grande penalidade” contra Moçâmedes. Todos se esquivaram a, marcá-la e por fim, o capitão da equipa ordenou que fosse eu…

Fez-se silêncio em redor do campo. Emoção; espectativa! O árbitro apita, o “tiro” parte e… golo da Huila!

Palmas, gritos, o delírio já muito nosso conhecido. Se até ali havia quem admitisse que eu era da “quinta coluna”, enganou-se e rectifícou a opinião.

Terminado o jogo, fui ter com meu irmão Júlio - extremo esquerdo da Selecção de Moçâmedes - e, acompanhados por outros seus companheiros de equipa, seguimos, de autocarro, até ao Hotel onde se hospedara a turma representativa do Sul.

Joguei, pois, contra Moçâmedes, com o mesmo interesse, a mesma vontade, o mesmo fervor que empregara quando defendi as suas cores.

Para mim, isto significa, simplesmente, respeito pela camisola que se veste, dignidade e brio pessoal.

Outro factor concorreu e teve preponderante influência no meu comportamento; é que a 10 de Março de 1918, na pequenina Vila de Humpata, distrito da Huila, distando vinte e poucos quilómetros de Sá da Bandeira, nascera o “presumível quinta coluna”…

Fui para Moçâmedes com ano e meio de idade, ali me criei e me fíz desportista. Mas isto não quer dizer que se três selecções se formassem e me fosse dado escolher, a preferência não recaísse na minha terra natal.

Contudo, se por motivos de filiação das equipas ou quaisquer outros, fosse obrigado a jogar contra a Humpata, empregar-me-ia com o mesmo ardor e apego à luta, a mesma vontade e o mesmo sentimento de respeito pela camisola que envergasse. Acima de tudo estaria o dever de corresponder, honesta e lealmente, à distinção recebida.

O desporto tem de ser uma escola de virtudes e não um meio bom para atingir um fim óptimo.

Assim o entendi sempre e deste modo ainda penso hoje.

 

A minha actividade desportiva estava limitada quase exclusivamente ao futebol. De vez em quando ia até ao barracão-ginásio do Liceu, onde havia um grupo de três espaldares, um plinto e poucos maís aparelhos destinados à ginástica.

Para não esquecer o que aprendera com o professor Angelo de Mendonça, fazia alguns exercícios.

Um dia, porém, o meu ilustre amigo, Tenente Osório - hoje Major em serviço em Évora - entendeu, e muito bem, que os alunos do Liceu podiam e deviam fazer, em desporto, mais do que futebol. Assim, formou uma equipa de esgrima de baioneta!

Com desvelado carinho, incontestável competência e muito trabalho, conseguiu preparar um grupo de jovens. Dava gosto ver a rapaziada evolucionando. Por isso mesmo, não só naquela modalidade como, também, no tocante a outros exercícios militares, não havia segredos para nós.

Mais tarde, quando cumpri o serviço militar em Cascais, de muito me serviu o que aprendi, em garoto, com aquele bom amigo e distinto oficial do nosso exército. O facto de saber muitas coisas, valeu para a concessão de umas dispensas extraordinárias, enquanto os outros camaradas ficavam no quartel, aprendendo o manejo de armas…

Diz o Povo - e tem razão: “O saber não ocupa lugar!..

 

Ir de Sá da Bandeira ao Lobito não é, positivamente, o mesmo que viajar entre Lisboa e Porto.

São nada menos do que uns mil quilómetros bem contados, fazendo-se a caminhada sob um sol abrasador e com alguns troços de estrada pouco recomendáveis para passeios.

Mesmo assim, para jogar futebol, Fiz esse trajecto duas vezes utilizando uma camioneta de carga!

O itinerário foi: Sá da Bandeira - Nova Lisboa - Benguela e, daqui, 20 minutos de comboio até ao Lobito.

Hoje Angola está ligada, em todas as direcções, por carreiras de avião, o que demonstra o formidável incremento dos transportes aéreos naquela Província do Ultramar.

Alguém perguntou certa vez, a um preto gentio, o que pensava ele acerca do avião. A resposta é muito curiosa:

- “O avião é uma coisa que anda devagar mas chega depressa!”

Mas porque no meu tempo, em Angola, não era, como agora, fácil e simples voar, fui de camioneta de carga!

O meu grande amigo Albano de Abreu, actual despachante oficial na Alfândega do Lobito, convidou-me a ir jogar, reforçando a equipa do Sporting Clube do Lobito nos jogos que realizaria para disputa de uma taça denominada “Mácára”.

Mesmo considerando que me encontrava a mil quilómetros de distância e lutando com falta de transportes, aceitei o convite.

Tive conhecimento da próxima saída de um caminhão de carga com destino a Benguela; procurei o motorista-proprietário do veiculo e, a troco de uma lata com 20 litros de gasolina, tudo se resolveu.

Partimos de madrugada. Na cabine, à frente, eu e ele; atrás, sobre a carga, dois serviçais pretos.

A viagem foi esplêndida.

No Lobito, festiva recepção, divertidíssimos “simpósios”. Do vermouth - aperitivo - ao caril de galinha e aos picantíssimos churrascos, nada faltava.

Como preparação atlética para jogos de responsabilidade, temos de convir que não se poderia arranjar melhor!…

O Albano de Abreu procurava evitar os excessos mas os seus amigos julgavam cumprir um dever de cortesia, rodeando-me de gentilezas culminadas com opíparos almoços e jantares.

E foi observando tais regras de alimentação que, dois ou três dias após a minha chegada ao Lobito, vesti a camisola do Sporting e “reforcei” a sua equipa de futebol.

Abstraindo o resultado final, interessa fixar que a minha actuação foi de molde a ficar desde logo convidado a jogar no segundo desafio para disputa da “Taça Mácára”!

Como estas viagens só podiam ser feitas aproveitando as férias de período no Liceu, voltei para Sá da Bandeira e, na data oportuna, tornei ao Lobito para disputar o segundo encontro.

Quer dizer; duas vezes mil quilómetros (ida e regresso totalizaram quatro mil quilómetros) vencidos em caminhão de carga, sem o mínimo conforto, para jogar futebol e sem a menor recompensa financeira!

Puro amadorismo e grande amor ao futebol! Nada mais!

Entretanto, integrado na equipa do Liceu, fui a Moçàmedes jogar alguns desafios.

A digressão do Académico não foi feliz pois creio termos perdido todos os jogos realizados.

Sem dúvida, jogava-se melhor futebol em Moçàmedes do que em Sá da Bandeira. A prová-lo estão os resultados obtidos não só pelas equipas de clube como pelas selecções locais. Em desporto, o Litoral manteve sempre marcada ascendência sobre o Planalto.»

 

In: Peyroteo, Fernando - Memórias de Peyroteo. 5ª ed. Lisboa : [s.n.], 1957 ( Lisboa : - Tip. Freitas Brito). pp. 38-45

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