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És a nossa Fé!

A Sporting TV e a liberdade de imprensa

Segundo li  num jornal, José Couceiro afirmou que, caso seja eleito, a Sporting TV será uma realidade. Ditas as coisas desta maneira, José Couceiro engana-se. O que ele pode, quando muito, querer dizer é que a Sporting TV será uma realidade se, querendo-o o Sporting, o Estado, através da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), der, para tanto, a sua autorização. Poderíamos, talvez, estar a falar de uma exigência comum, se nos confrontássemos com outra área de actividade. Estando em causa a comunicação social, trata-se  como é óbvio, de uma questão delicadíssima, respeitante  a liberdades que desempenham um papel fulcral e insubstituível no funcionamento do nosso modelo de sociedade, e  que, mais do que com o Sporting, embora tendo com o clube a conexão que dá origem a este escrito, se prende, essencialmente, com os nossos direitos, liberdades e garantias e com o exercício dos nossos direitos de cidadania. 

 

A Lei da Televisão  em vigor determina (recorro à linguagem comum e não  à terminologia técnica utilizada no texto legislativo, de mais difícil compreensão pelos não iniciados, entre os quais me incluo) que os canais que utilizem o espectro radioeléctrico - actualmente, as duas RTP, a SIC e a TVI - estão sujeitos a licenciamento, devendo os canais por cabo sujeitar-se a autorização, a conceder pela ERC. Se, quanto aos primeiros, a exigência se torna facilmente compreensível - tanto mais quanto nos lembrarmos de que há actividades socialmente relevantíssimas que dependem da correcta gestão deste espaço, como, por exemplo, diversos serviços móveis, radionavegação aeronáutica e marítima, serviços relacionados com a meteorologia e com a actividade dos bombeiros, etc. - já no que respeita aos segundos, a necessidade de obter autorização do Estado permanece, pelo menos para mim, envolta no mais profundo mistério. Vejamos:

 

A RTP, a SIC e a TVI, bem como outras da mesma natureza que possam, nos termos da lei, vir a ser constituídas, utilizam um bem do domínio público, o espaço radioeléctrico, um recurso escasso (embora a evolução tecnológica, com a Televisão Digital Terrestre, permita um muito maior aproveitamento do espaço disponível) que o Estado deve, portanto, gerir, disciplinar e fazer partilhar em obediência aos valores e interesses consagrados na nossa ordem jurídica. É bom de ver que, considerando tais circunstâncias, a lei não pode deixar de fixar  um conjunto de regras que determinem, até certo ponto, os princípios por que deve orientar-se o funcionamento e a programação destes canais, bem como o regime da atribuição das respectivas  frequências. Nada, pois, mais natural do que as licenças serem atribuídas no âmbito de um concurso regido por normas e procedimentos razoavelmente complexos. Mas, os canais por cabo? O que é que o Estado tem a ver com a decisão de seja quem for que  queira dedicar-se a esta actividade? Se alguém ou alguma sociedade ou associação (por exemplo, o Sporting) dispuser dos meios necessários e negociar a distribuição do canal com algum operador  licenciado para o efeito (a Zon, A Meo, a Vodafone,etc.), onde é que existe algum interesse que possa justificar a necessidade de o gozo de uma liberdade fundamental estar dependente de autorização prévia do Estado? Não sei, mas imagino que, neste quadro, se houver questões que exijam a tutela pública, elas digam respeito à actividade dos operadores de distribuição, relativamente, por hipótese, à ocupação do solo ou do subsolo ou à satisfação de condições impostas pela lei das telecomunicações. 

 

A situação apresenta-se de forma ainda mais absurda se tivermos em conta que, em conformidade com o artº 38º, nº2, al.c), da Constituição, nenhuma autorização pode ser exigida no caso de se tratar de um jornal. Se o Sporting quisesse lançar um diário, não sofreria nenhuma limitação deste género, não precisaria de nenhuma autorização, estando apenas vinculado a uma obrigação de registo, também questionável, diga-se, mas que não põe em causa a liberdade de imprensa ou a liberdade de expressão. Imagine-se só o que aconteceria se, independentemente da moldura jurídico-constitucional, se pretendesse aprovar uma lei que condicionasse o lançamento de um jornal à concessão de uma autorização pelo Estado! Cairiam e com toda a razão o Carmo e a Trindade.Isto quer dizer que o lançamento de um jornal que, presumivelmente, venha a ter o peso e influência sociais e políticos do Público, do Diário de Notícias ou do Expresso  não está, e muito bem, submetido ao controlo do Estado, enquanto a actividade de um canal por cabo que pretenda dedicar-se, por exemplo, à culinária precisa da autorização da ERC para nos dar inofensivas receitas de cozinha - não que a ERC tenha qualquer responsabilidade nesta matéria, já que se limita a exercer as suas funções de regulação em conformidade com o regime jurídico fixado pelos órgãos a que a constituição concede o poder legislativo.

 

Não interessa agora saber se  as regras para a concessão da autorização  são ou não muito exigentes, existindo, no entanto, diga-se desde já, algumas limitações que podem tornar-se desconfortavelmente constrangedoras. Mas o ponto principal é este: os sportinguistas, ou o clube, sem que se saiba exactamente porquê, vão ter, em obediência a valores e interesses desconhecidos,  as suas liberdades de imprensa e de expressão condicionadas pela necessidade de autorização, a conceder pelo Estado, para a actividade do seu canal de televisão por cabo.

 

Há dificuldades jurídico-constitucionais que uma solução destas pode, mais tarde ou mais cedo, provocar, embora, até à data, é verdade, tanto quanto nos é permitido saber pelas notícias vindas a público, ninguém pareça ter levantado o problema. Diga-se que a norma constitucional acima mencionada apenas se refere a jornais e outra publicações porque, como é evidente, as televisões por cabo constituíam à época da aprovação da Constituição uma realidade longínqua, ausente das perspectivas do legislador. Em meu entender, uma interpretação actualista do texto constitucional não pode deixar de considerar que operadores de televisão e rádio que não ocupem o espectro radioeléctrico se encontram abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, pelo que não devem estar sujeitos a nenhuma autorização administrativa. Mas, para além disto, tendo em conta o valor decisivo da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão no nosso modelo de sociedade e nas nossas aspirações colectivas, esta, do ponto de vista das escolhas políticas, está longe de me parecer a melhor solução legal.

 

 

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